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    Pasquale Cipro Neto

    Agência-barco' ou 'barco-agência'?

    DE SÃO PAULO

    19/12/2013 03h00

    Recentemente, uma peça publicitária da Caixa Econômica Federal mostrou um dos integrantes da sua vasta rede de atendimento: nada menos do que uma agência que funciona em um grande barco.

    O fato é que alguns leitores me perguntaram se o nome dado pela Caixa ("agência-barco") é correto ou se deveria haver uma inversão na ordem dos elementos que compõem o termo ("barco-agência").

    A questão é interessante, mas vou logo avisando que há pelo menos um argumento para cada lado. Se levarmos em conta o que é comum na língua, ou seja, se tomarmos como base casos análogos ("caminhão-pipa", "caminhão-tanque", "navio-escola", "navio-tanque", "vagão-leito", "carro-bomba" etc.), veremos que esses substantivos compostos têm um processo de formação padronizado: em primeiro lugar vem sempre o substantivo que define o que a coisa é na essência; em seguida, vem o substantivo que indica a finalidade do elemento nomeado pelo primeiro substantivo.

    Tradução: um caminhão-pipa é antes de tudo um caminhão (construído para atuar como pipa, isto é, como reservatório de água etc.); um carro-bomba é antes de tudo um carro (preparado para explodir).

    Em sendo assim, o que a Caixa Econômica Federal tem é barco-agência, ou seja, um barco construído com a finalidade de funcionar como agência. A levar em conta o critério padrão, uma agência-barco seria uma agência construída para funcionar como barco, o que, cá entre nós, não faz lá muito sentido.

    E qual seria o argumento do outro lado, o que deve ter norteado a Caixa no momento de optar por esta ou aquela forma? Posso estar enganado, mas algo me diz que o motor dessa escolha foi mercadológico, isto é, o marketing mandou na parada. Em termos de comunicação imediata e/ou da intenção de fazer o leitor/espectador/ouvinte captar de pronto a mensagem, talvez "agência-barco" seja mais forte e convincente que "barco-agência".

    E o plural? Pois é aí que a coisa talvez se escancare de vez. De acordo com a tradição gramatical, o plural de substantivos compostos que têm a formação já vista (substantivo + substantivo, com o segundo limitando a extensão do primeiro em termos de finalidade, semelhança etc.) é feito com a flexão do primeiro (caminhões-pipa, caminhões-tanque, navios-escola, navios-tanque, vagões-leito, carros-bomba).

    Modernamente, registra-se também o plural feito com a flexão dos dois elementos, como atestam os dicionários e as gramáticas (caminhões-pipas, caminhões-tanques, navios-escolas, navios-tanques, vagões-leitos, carros-bombas). Posto isso, teríamos dois plurais para "barco-agência": "barcos-agência" (de acordo com a tradição) ou "barcos-agências" (de acordo com o que se registra mais recentemente).

    No caso do nome adotado pela Caixa ("agência-barco"), os plurais possíveis ("agências-barco" e "agências-barcos") parecem reforçar o gostinho de coisa estranha, de coisa que não "orna", como se diz no interior. Parece que algo não vai bem, já que, definitivamente, antes de ser uma agência, aquilo é um barco, feito para funcionar como agência, sim, mas total e essencialmente dependente da condição de barco para cumprir o seu papel, o de estar aqui e ali neste imenso Brasil.

    Sei que essa conversa toda não muda o preço do feijão, mas pode servir para uma boa reflexão sobre o processo de formação de alguns vocábulos compostos e, em termos mais amplos, sobre a relação que há entre as palavras, os conceitos etc. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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