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    Pasquale Cipro Neto

    Palavras traiçoeiras

    DE SÃO PAULO

    13/02/2014 03h00

    A barbárie brasileira não tem fim. Nos momentos mais agudos, sempre há quem proponha mudanças na lei com o fim de erradicar isto e aquilo, punir este ou aquele etc. É o que se vive agora, depois da tragédia que levou de nós o cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Ilídio Andrade. O Brasil vive de improvisos, como se o país não fosse, por si só, um caótico improviso.

    Num desses discursos de ocasião, uma autoridade de um dos Estados da federação disse que "essa lei precisa vigir o mais rápido possível". Em seguida, alguém perguntou a essa autoridade se era possível "deslumbrar uma luz no fim do túnel".

    Ai, ai, ai... Alguns jornalistas e (pior, muito pior) muita gente do direito, da justiça etc. trocam "viger" pela inexistente forma "vigir". Uma lei não deve "vigir"; deve "viger", que é sinônimo de "vigorar", "ter vigência", "estar em vigor". Não custa lembrar que, se o infinitivo é "viger", o gerúndio é "vigendo" ("Essa lei ainda não está vigendo").

    "Deslumbrar" não é sinônimo de "vislumbrar", que, ao que parece, era o verbo que o entrevistador pretendia usar ("É possível vislumbrar uma luz no fim do túnel?"). "Vislumbrar" significa "enxergar parcial, indistinta ou fracamente" ("Houaiss"); "deslumbrar" significa "ofuscar", "causar ofuscamento", "fascinar", "causar encantamento" etc.: "Visitou o Canadá e ficou deslumbrada com tudo o que viu por lá".

    Na TV, nas conversas sobre as manifestações, a violência etc., volta e meia se ouve alguém falar em "reações feéricas", "comportamento feérico" etc. Parece que querem dizer "reações ferozes", "comportamento feroz". O adjetivo "feérico" não tem nada que ver com a selvageria ou com o mundo das feras. De origem francesa ("féerique"), a palavra "feérico" se refere ao mundo das fadas ("fée" é "fada" em francês). Como se vê, "feérico" significa "mágico", "pertencente ao mundo da fantasia", "fantástico", "fascinante". Quem nos dera fosse realmente "feérico" (e não feroz) o comportamento da parcela selvagem dos manifestantes (e também o da parcela selvagem dos policiais)!

    Recentemente, um radialista de uma das nossas mais importantes emissoras falava do calor, da (falta de) chuva etc. Lá pelas tantas, disse que uma chuvinha fraca e rápida como a que caíra na tarde daquele dia não bastava. "Precisamos de uma chuva intermitente", disse ele. Salvo engano, o radialista queria dizer "chuva ininterrupta", ou seja, constante, sem interrupção, contínua. É claro que ninguém quer um temporal que dure 400 horas, mas uma chuva intermitente, isto é, uma chuva que não é contínua, que não é constante, que vai e vem, não parece ser a solução para o que se vive hoje em boa parte do país.

    Outra dupla perigosa é formada por "mandado" e "mandato". O mandato (e não o "mandado") da presidente Dilma Rousseff, o dos atuais governadores e o dos deputados federais terminam em 31 de dezembro deste ano.

    O fato é que estamos todos sujeitos a cochilos desse tipo, mas, quando eles ocorrem, o resultado quase sempre é desastroso. A solução? Precaver-se, é claro, o que significa, por exemplo, recorrer a um dicionário, quando a dúvida se manifesta. O problema é que boa parte das pessoas que tropeçam nessas palavras traiçoeiras sempre as usou com plena convicção de acerto. Aí, parece não haver nada a fazer. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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