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    Pasquale Cipro Neto

    'O gol que Pelé não fez contra o...'

    DE SÃO PAULO

    31/07/2014 01h30

    Neste espaço, já citei inúmeras vezes questões de importantes vestibulares que exigem dos candidatos a percepção da ambiguidade, ou seja, do duplo sentido. Não raro as questões pedem também que o candidato reescreva a frase "torta", eliminando-lhe a anfibologia.

    Antes que alguém pergunte, "anfibologia" (sinônimo de "ambiguidade") é termo que se usa com alguma frequência em textos filosóficos e linguísticos, especialmente nos que tratam de lógica e/ou de duplo sentido decorrente da estrutura sintática.

    Posto isso, vamos a (mais) um exemplo do que acabei de citar. O mote vem desta frase, que estava num site de notícias: "Bósnio da Roma faz gol que Pelé não fez contra o Manchester". Até tentei ajudar o redator do título esforçando-me para encontrar na minha larga memória futebolística um jogo do glorioso Santos de Pelé contra o Manchester United. Não encontrei. E não encontrei porque, salvo engano, esse embate nunca ocorreu. Por via das dúvidas, fui para o Google. Nada de nada. Santos x Manchester só aparece nos videogames da Fifa...

    O caro leitor já se deu conta da ambiguidade que há no título citado? Temos aí um clássico exemplo de "ambiguidade estrutural", isto é, de duplo sentido decorrente da "montagem" da frase. Quem acompanha de perto o futebol percebe facilmente o tropeço na redação, já que é célebre o gol que Pelé não fez contra a Tcheco-Eslováquia na copa de 1970. A partir daí, é fácil deduzir que foi o "bósnio da Roma" que fez, contra o Manchester, um gol como o que Pelé tentou em 70. O "conhecimento do mundo" permite que se entenda a intenção do redator, ainda que a frase seja estruturalmente ambígua.

    Para evitar a lambança, bastaria ter feito o óbvio, que, no caso, equivale a dar outra ordem aos termos da frase: "Contra o Manchester, bósnio da Roma faz gol que Pelé não fez".

    É bom lembrar que nem sempre a ambiguidade decorre de derrapadas sintáticas, de mau ordenamento dos termos etc. Há frases em que a ambiguidade é intencional, o que normalmente decorre do talento de quem redige. Veja este exemplo, apropriadíssimo nos tempos mais do que secos que estamos vivendo: "Vai lavar as mãos para o abandono da Mata Atlântica? Aproveita enquanto tem água.". Trata-se de uma peça publicitária da Fundação SOS Mata Atlântica. O texto foi adaptado pela banca da Unicamp, que o incluiu no seu vestibular de 2013.

    A primeira questão sobre o texto era esta: "Há no texto uma expressão de duplo sentido sobre a qual o apelo da propaganda é construído. Transcreva tal expressão e explique os dois sentidos que ela pode ter".

    Em tempos em que pouca gente entende ironias e metáforas, em tempos em que muita gente não entende uma linha do que lê, mas se vê no direito de destilar ódio visceral contra tudo e todos, não causaria surpresa a notícia de que a maioria dos candidatos não respondeu acertadamente à questão. Bem, quem sabe que o sentido figurado de "lavar as mãos" é "eximir-se de qualquer responsabilidade" entende de imediato a peça da Fundação SOS Mata Atlântica e responde facilmente à questão da Unicamp.

    Exigir que se saiba de onde vem o sentido figurado dessa expressão talvez seja algo até cruel e/ou impiedoso. Nem Pôncio Pilatos seria indiferente a tamanha ignorância...

    É sempre bom lembrar e relembrar que, como acabamos de ver, a ambiguidade não é, por si só, sinal de texto mal construído. Em textos literários, publicitários etc., a ambiguidade intencional muitas vezes é justamente a meta (e a glória). É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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