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    Pasquale Cipro Neto

    Xingar e ofender

    21/08/2014 02h00

    Uma das edições do "Repórter CBN" de ontem veiculou uma passagem parecida com esta: "Algumas vítimas o xingaram e tentaram agredi-lo...". O referente do "o" e do "lo" em questão é o ex-médico Roger Abdelmassih.

    O caro leitor certamente notou que o redator preferiu "xingar" a "ofender", "destratar", "afrontar" etc. E fez ele muito bem. O que as vítimas fizeram mesmo foi "xingar". Imagine o texto assim: "Algumas vítimas o ofenderam e tentaram agredi-lo...". Que tal? A mensagem teria o mesmo tom, a mesma dose de realidade?

    "Xingar" pode até ser sinônimo de "ofender" etc., mas é claro que cada um desses verbos tem seus próprios matizes. Os dicionários (brasileiros e portugueses) registram "xingar" como típico do português do Brasil. Sorte nossa termos e podermos usar um termo tão específico como esse.

    "Xingar" vem do quimbundo, "língua da família banta, falada em Angola pelos ambundos" ("Houaiss").

    Esse episódio ilustra muitíssimo bem a importância da escolha das palavras. Não é à toa que o "Houaiss" define (muito bem) "sinônimo" como "palavra de significado semelhante ao de outra e que pode, em alguns contextos, ser usada em seu lugar sem alterar o significado da sentença". É bom repetir: "pode, em alguns contextos, ser usada em seu lugar sem alterar o significado da sentença". No caso do contexto do boletim da CBN, parece que a troca de "xingar" por "ofender" de fato não altera essencialmente o significado da sentença, mas altera (e como!) o tom, o matiz.

    É por essas e outras que convém voltar ao tema "simplificação da linguagem", que comentei rapidamente há duas semanas. Citei a troca (em "O Alienista", de Machado de Assis) de "sagacidade" por "esperteza", lembrada pelo professor João Cezar de Castro Rocha em artigo publicado em "O Estado de S. Paulo".

    Eis uma das passagens: "...pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança...". O "Houaiss" define assim "sagacidade": "1. Qualidade ou virtude de sagaz; aptidão para compreender ou aprender por simples indícios; 2. Agudeza de espírito; argúcia, manha, malícia".

    E então, caro leitor? Que lhe parece trocar "sagacidade" por "esperteza"? É sempre bom relembrar a carga pejorativa da palavra "esperteza" no linguajar brasileiro de hoje.

    A questão da escolha do vocabulário tem outros aspectos relevantes. Um deles é visto quando se faz a "coesão lexical", que ocorre, por exemplo, com o uso de termos que representem seres já citados num texto. Certa vez, o grande Clóvis Rossi analisava determinado aspecto da sordidez da realidade brasileira. No fim do texto, o grande Rossi escreveu isto: "...a oitava economia do mundo não passa de um grande desastre social".

    Como se vê, Rossi substituiu "o Brasil" por "a oitava economia do mundo". Com esse recurso, o articulista não só evitou a enfadonha repetição (de "Brasil", no caso), como também acrescentou/lembrou uma informação importante (o PIB do Brasil era o oitavo do mundo). Se levarmos em conta o choque que se dá entre o fato de termos um PIB significativo e sermos "um grande desastre social", notaremos a habilidade do articulista com as palavras. Escrever bem não é só juntar algumas palavras obedecendo às normas gramaticais...

    Às vezes, o tiro sai pela culatra. Numa de suas provas, a Unesp incluiu um texto cujos protagonistas eram os pilotos Ayrton Senna da Silva e Alain Prost. Lá pelas tantas, depois de evitar várias vezes a repetição dos nomes dos pilotos (o brasileiro, o francês, o campeão do ano X, o campeão do ano Y, o tricampeão, o tetracampeão...), o articulista não se conteve: usou "o nanico" para referir-se a Prost (como se Senna fosse um gigante...).
    Além de provocar confusão, a coesão lexical foi deselegante. Umas aulinhas com os textos dos mestres (como Rossi) podem ajudar. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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