• Colunistas

    Monday, 20-May-2024 05:49:38 -03
    Pasquale Cipro Neto

    Ordem alfabética e abstração

    16/10/2014 02h00

    Na semana passada, tratei da extrema dificuldade que os mesários têm para localizar os nomes dos eleitores nos caderninhos que manuseiam. Foi muito, muito grande o número de mensagens que recebi de leitores que passaram pelo mesmo problema, não só no último dia 5, mas também em eleições passadas.

    Sobre o que analisei na última coluna, um companheiro desta Folha me escreveu interessante mensagem em que, a partir de um excerto do livro "A Informação", de James Gleick, fala da relação entre a incapacidade que abordei e a (in)capacidade de abstrair. O excerto é este (tradução do próprio colega): "O sistema (...) força o usuário a destacar a informação do significado, a tratar palavras estritamente como filas de caracteres, a observar de maneira abstrata a configuração da palavra. Além disso, a ordenação alfabética exige um par de procedimentos, um inverso ao outro: organizar uma lista e procurar por itens; classificar e buscar. Em qualquer direção, o procedimento é recursivo. A operação básica é uma operação binária: maior ou menor. Essa operação se faz primeiro em uma letra, depois, aninhada como sub-rotina, faz-se na letra seguinte, e daí por diante. Isso cria uma eficiência assustadora. O sistema se adapta facilmente a qualquer tamanho, a macroestrutura sendo idêntica à microestrutura. Uma pessoa que compreende a ordem alfabética encontra qualquer item numa lista de milhares ou milhões, sem errar, com perfeita confiança. E sem saber nada sobre o significado".

    O colega conclui com esta dolorosa afirmação: "Se não conseguimos que cidadãos comuns bem educados (...) tenham esse mínimo de abstração, isso significa que dificilmente o Brasil terá como desenvolver, em curto prazo, em escala suficiente, capacidades ainda mais abstratas necessárias na era da informação".

    Aí ponho na roda a eleição e o que dizem os dois candidatos sobre o tema "educação": nada de nada, além do óbvio (educação em tempo integral, construção de X escolas, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá...).

    Pois bem. Suponhamos que realmente se construam as tais X escolas etc. O que se fará nelas? Como se procederá? Que linha/s seguiremos? Os nossos professores estão ou serão preparados para formar alunos que pensam, que sejam capazes de abstrair? Ou vamos continuar como estamos, o que nos põe sempre em último lugar nos certames internacionais de leitura e compreensão de texto?

    Qualquer que seja o vitorioso, o poder central vai continuar flertando com o lixo cultural que se serve neste país? Ou vai ter coragem suficiente para propor uma revolução nessa área, para que tenhamos um povo bem educado e bem-educado, que seja capaz de compreender o que lê, que recupere a delicadeza (se é que um dia a teve) e que, recuperada a delicadeza, perceba a delicadeza de Tom Jobim, de Edu Lobo, de Villa-Lobos, de Celso Adolfo, de Guimarães Rosa, de Drummond, de Bandeira, de Manoel de Barros etc., etc., etc.?

    "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia" (de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa). Ah se engenheiros, advogados, médicos, economistas, professores de português tivessem abstração bastante para entender isso! "E engenheiro tem de entender uma bobagem dessas para ser engenheiro?" Sem comentário. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024