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    Pasquale Cipro Neto

    Metáforas da saudade

    29/01/2015 03h00

    No antológico filme "Il Postino" ("O Carteiro e o Poeta", na versão brasileira), Mario Ruoppolo, carteiro vivido pelo inesquecível Massimo Troisi, estabelece uma fecunda convivência com o grande poeta chileno Pablo Neruda, vivido por Philippe Noiret, também inesquecível.

    Nas conversas com Neruda, que cumpria exílio no sul da Itália, o carteiro ("postino", em italiano) acaba descobrindo nuanças do fazer poético, o que o leva a perceber que é muito melhor sugerir e/ou dar a entender do que dizer com todas as letras. Ruoppolo se encanta quando descobre o que é uma metáfora e mais ainda quando constrói uma metáfora.

    Os tempos que vivemos não são propriamente os melhores para que se fale de metáforas, já que a coisa toda anda muito bruta, na lata, com pouca ou nenhuma imaginação, com metáforas pouco ou nada inspiradas.

    O resultado disso tudo é o embrutecimento, a perda da sensibilidade, da delicadeza, da capacidade de compreensão do belo, do singelo.

    A metáfora é a figura de linguagem por excelência, que concentra a síntese do que é a linguagem figurada, simbólica, em que não se usam as expressões "normais", mas "imagens" que traduzem o que se quer dizer. Em "Aquela cara é o coração de Jesus", da letra de "Giuletta Masina", Caetano Veloso transfere diretamente para "aquela cara" (a cara de Giuletta Masina no papel da prostituta Cabiria, do filme "Le Notti di Cabiria", de Federico Fellini) o que vê de semelhante entre essa cara e o coração de Jesus. Essa transferência direta é chamada de metáfora.

    Densa, forte, fortíssima, a imagem sintetiza muitos dos sentimentos cristãos, dos quais muitas vezes até o bonachão Francisco se esquece.

    Ao redigir o texto da semana passada ("Saudade"), eu tinha a intenção de citar algumas metáforas sobre a saudade, mas faltou espaço. De todas as que me vieram à mente, algumas das que mais me tocam estão na letra de "Pedaço de Mim", de Chico Buarque. Uma delas diz que "A saudade é o revés de um parto"; outra, que "A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".

    Diante de achados poéticos dessa magnitude, o melhor é silenciar, em sinal de respeito à grandiosidade artística. Impõem-se o recolhimento, a reverência, a reflexão.

    No filme "Il Postino", Neruda diz ao carteiro que, quando é explicada, a poesia se torna banal. Muitas vezes (ou quase sempre), isso é fato. A tentativa de tradução de certas metáforas pode esbarrar no ridículo, no nonsense. É mais ou menos como explicar certas piadas. Perde-se a graça.

    O grande Garcia Lorca costumava mostrar aos amigos alguns dos versos que acabara de escrever. Muitas vezes, ouvia algo como "É tudo muito bonito, mas o que isso significa?". "Não importa", dizia ele; "se você achou bonito, é o que importa".

    Muitas vezes a incompreensão da linguagem literária não resulta só da falta de percepção das imagens; resulta também do desconhecimento dos textos com os quais dialoga o texto que lemos e/ou do significado de algumas passagens. "Quando se leem os versos iniciais da "Canção do Exílio" de Murilo Mendes ("Minha terra tem macieiras da Califórnia / Onde cantam gaturamos de Veneza"), por exemplo, é fundamental conhecer a "Canção do Exílio" original (de Gonçalves Dias) e, sobretudo, compreender o tom irônico do texto e o sentido de certas palavras.

    Já toquei de leve nesse poema em outras colunas e já prometi trocar duas palavras a respeito dele. Um dia eu cumpro a promessa. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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