• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 03:18:19 -03
    Pasquale Cipro Neto

    'A vida vem em ondas...'

    09/04/2015 02h00

    Diz a lenda que, quando escreveu a letra de "Como Uma Onda" (a melodia é de Lulu Santos), o querido Nélson Motta foi criticado pelo verso "A vida vem em ondas", que alguém teria julgado "pobre", "redundante" ou sei lá o quê. A mesma lenda diz que Nélson teria gostado da crítica, já que o verso não é dele; é uma singela homenagem ao monumental Vinicius de Moraes, que escreveu "A vida vem em ondas" na primeira estrofe do antológico poema "O Dia da Criação". Nélson teria dito que é uma honra estar ao lado de Vinicius, por qualquer razão.

    Esse é (ou seria) apenas mais um capítulo da dificuldade de compreensão de um texto por falta de conhecimento dos textos com os quais dialoga o texto que se lê. O nome disso é intertextualidade, item cada vez mais comum em concursos públicos, vestibulares etc.

    Pouca gente conhece esse poema de Vinicius pelo nome verdadeiro, que quase sempre é trocado pelo estribilho "Porque hoje é sábado". Uma vista d'olhos na segunda parte da obra nos mostra diversas passagens que continuam atualíssimas (o poema é de 1946). Algumas delas podem ser tomadas ao pé da letra; a outras basta uma pequena adaptação. Vejamos três delas: "Há um piquenique de políticos / Porque hoje é sábado"; "Há um grande acréscimo de sífilis / Porque hoje é sábado"; "Há um garden-party na cadeia / Porque hoje é sábado".

    O "inocente" Vinicius não sabia que o "piquenique de políticos" não ocorre só "porque hoje é sábado"... Para atualizar a passagem "Há um grande acréscimo de sífilis", basta substituir "sífilis" por "Aids".

    E o verso "Há um garden-party na cadeia"? Não mudou nada, Poetinha! A hoje desusada expressão "garden-party" (ainda registrada nas edições recentes dos nossos bons dicionários) significa "festa ou recepção ao ar livre, geralmente num jardim" ("Houaiss"). Os males do Brasil vêm de longe, dona Joana.

    De cunho analítico, opinativo, a (pouco divulgada) terceira parte de "O Dia da Criação" é escrita em linguagem formal, que Vinicius dominava muitíssimo bem. Por ser mais conhecido pelo seu trabalho na música popular, a alguns Vinicius parece um escritor que trafegou basicamente pela linguagem informal. Não é bem assim. Em muitas das letras que escreveu e em boa parte da sua obra livresca, Vinicius se valeu da linguagem formal, erudita, fruto da vastíssima cultura que detinha.

    Veja este trecho: "De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas / E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra / E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra / Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado".

    Que valor tem aí a forma verbal "fora"? Trata-se da terceira do singular do pretérito mais-que-perfeito do verbo "ser" ("fora" pode ser também do verbo "ir"). E que valor tem aí essa forma verbal? "Fora" está aí por "seria", do futuro do pretérito ("Melhor seria que o Senhor das Esferas tivesse descansado").

    Esse uso, clássico, ocorre desde sempre. "E, se mais mundo houvera, lá chegara", escreveu Camões ("Os Lusíadas"). "Houvera" e "chegara" não têm aí o valor específico do pretérito mais-que-perfeito, tempo que, como se sabe, indica fato passado anterior a outro, mais velho do que outro. "Houvera" equivale a "houvesse", e "chegara" equivale a "chegaria" ("E, se mais mundo houvesse, lá chegaria").

    É muito fácil achar na internet "O Dia da Criação". Leia-o todo, caro leitor. E delicie-se com essa bela viagem do grande Vinicius. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024