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    Pasquale Cipro Neto

    'É isso que indiguina a sociedade'

    11/06/2015 02h00

    A discussão sobre a redução da maioridade penal ferve Brasil afora. No meio do tiroteio entre defensores das duas posições antagônicas, surge um ou outro ataque à norma-padrão da língua. Na semana passada, na TV, durante uma entrevista, um deputado federal favorável à redução da maioridade concluiu seu raciocínio desta maneira: "É isso que indiguina a sociedade".

    Pois bem, caro leitor. Escrevi "indiguina", com "gui", para tentar traduzir graficamente a maneira como o nobre parlamentar pronunciou a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo "indignar", que não se escreve com "ui" depois do "g", o que também ocorre com o verbo "dignar" e com os adjetivos "digno" e "digna".

    Quem leu exatamente o que está escrito pronunciou "indiguina" com força no terceiro "i" ("indiGUIna"), exatamente como fez o deputado.

    O fato é que não é essa a pronúncia (muito menos a grafia) que se verifica na norma-padrão da língua. Como já vimos, não há "gui" em "dignar" e "indignar", como também não há em "estagnar", "impregnar", "consignar", "designar", "resignar", "persignar" etc.

    Por falar em "persignar", nunca é demais lembrar ao menos um trecho do memorável poema "Não se Mate", do sempre imprescindível Carlos Drummond de Andrade:

    "O amor, Carlos, você telúrico,
    a noite passou em você,
    e os recalques se sublimando,
    lá dentro um barulho inefável,
    rezas,
    vitrolas,
    santos que se persignam,
    anúncios do melhor sabão,
    barulho que ninguém sabe,
    de quê, praquê".

    É fácil encontrar esse poema na internet, caro leitor. Leia-o todo, reflita sobre ele e note a sua contundente atualidade. Vale cada sílaba.

    O que é "persignar-se", que aparece no verso "santos que se persignam"? Vamos lá: "Fazer com o polegar três sinais da cruz, na testa, na boca e no peito" ("Aulete").

    Se me permite, caro leitor, vou perguntar-lhe como você leu "santos que se persignam". Não imitou o nobilíssimo deputado, certo? A tonicidade está no "i" da sílaba "sig".

    Para os que gostam de saber a origem do desvio (na pronúncia e talvez na grafia), a explicação mais cabível talvez seja esta: a pronúncia mais comum do infinitivo dos verbos que terminam em "gnar" é mesmo a que se assemelha a algo como "diguinar", "estaguinar", "impreguinar" etc., ou seja, quase todos os brasileiros lemos o infinitivo desses verbos como se houvesse um "i" antes do "n" que inicia a última sílaba ("nar"). Daí para a pronúncia de determinadas flexões desses verbos como se de fato houvesse uma sílaba "gui" é um pulo.

    Tudo isso explica ou talvez explique a origem do desvio e/ou da pronúncia inadequada à norma-padrão da língua, mas não é suficiente para torná-lo (o desvio) "legítimo".

    Posto isso, caro leitor, vamos ler, de acordo com a norma, as flexões verbais presentes nas frases a seguir: "A podridão na política estagna a economia", "Esse cheiro se impregna na roupa", "Por que você não consigna o seu carro a uma loja especializada?", "Dilma quase sempre designa gente obscura para o seu ministério", "Ele não se resigna com a perda da casa".

    E então, caro leitor? Pôs força na vogal que antecede o "g" em todas as emissões? Se me permite, vou destacar a vogal tônica de cada flexão: "estAgna", "imprEgna", "consIgna", "desIgna", "resIgna". É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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