• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 04:48:58 -03
    Pasquale Cipro Neto

    'Quando você foi embora...'

    18/06/2015 02h00

    Escreve-me o mais que amigo Celso Adolfo, excepcional compositor e músico mineiro, desses tantos que o Brasil dado ao lixo cultural não conhece (autor de "Coração Brasileiro", "Nós Dois" e outras inumeráveis maravilhas): "Na segunda-feira, um desconhecido me para na rua, me abraça e diz: 'Os meus sentimentos pela morte de Fernando Brant. Não é fácil a perda de um poeta da música, em lugar nenhum. Você não acha que foi cedo demais?'. () Esse abraço me balançou de um modo diferente. Ele supôs (e acertou) o meu incômodo e me via (acertando novamente) como um parente da família que perdia Fernando Brant. Parente da família das palpitações, dos instrumentos, da música. É nessa família, em que Fernando Brant viveu, que ele me via como chegado e merecedor de condolências tal como os parentes (de sangue) do poeta de tantas e belas letras mundo afora".

    Na resposta a Celso, eu lhe disse que ele foi profundo e preciso. Como não sou músico, sinto-me parte de uma parte dessa família (a parte das palpitações –que maravilha esse achado de Celso Adolfo!). E, como também afirmei a Celso, sinto que essa família não para de encolher.

    O leitor habitual da coluna sabe que neste espaço citei Fernando Brant inúmeras vezes. A última foi há pouco tempo (no texto de 21/5). Eu poderia escrever sabe Deus quantas colunas sobre os achados linguísticos e poéticos das letras de Brant, mas, como o espaço é inexorável, cito este trecho da monumental "Saudade dos Aviões da Panair (Conversando no Bar)", cuja melodia é de Milton Nascimento: "Nada de triste existe que não se esqueça / Alguém insiste e fala ao coração / Tudo de triste existe e não se esquece / Alguém insiste e fere no coração / Nada de novo existe neste planeta / Que não se fale aqui na mesa de bar".

    Note, caro leitor, como o poeta trabalha o tempo e o modo dos verbos "existir", "esquecer" e "falar". Em "Nada de triste existe que não se esqueça", a forma "existe", do indicativo, é taxativa, enquanto a forma "esqueça" ("que não se esqueça"), do subjuntivo, trabalha no campo do suposto, do possível (impossível, no caso): "Não existe nada de triste que não possa ser esquecido".

    Todo o conteúdo desse trecho é taxativo e revela certeza absoluta do eu lírico? Não e não, caro leitor. Certeza é coisa dos presunçosos, dos que acham que sabem tudo, que conhecem tudo, que veem, anteveem e julgam tudo. Como dizia o meu saudoso professor de filosofia João Paixão Netto, "o homem deve amar a verdade, e não a certeza".

    Os versos seguintes contradizem os já citados: "Tudo de triste existe e não se esquece / Alguém insiste e fere no coração". Agora a forma verbal "esquece", posta no indicativo, não trabalha no campo do suposto, do possível, mas no da realidade, da confirmação: "Não se esquece a tristeza, tudo que há de triste". Alguém ousaria dizer que os dois trechos, contraditórios, são excludentes? Quem conhece um pouco da vida sabe que a coisa é mesmo assim.

    Tive a honra (desde 1994) de privar com Fernando, que, gentilíssimo, avisava-me das suas vindas a São Paulo. Na última vez que nos encontramos aqui, jantamos juntos e depois o levei ao hotel. Despedimo-nos, e esperei que ele sumisse nos corredores do hotel. Parece que eu sabia que seria a última vez.

    Os deuses certamente já deram a Fernando o lugar que ele merece: o de um grande artista e, sobretudo, o de uma grande alma, que até o fim se manteve imune à fogueira das vaidades. Obrigado por tudo, caríssimo Fernando. Você me abriu muitas das portas de vários mundos, com suas memoráveis letras, conversas e trabalhos que fizemos juntos. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024