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    Pasquale Cipro Neto

    Ainda sobre a crase...

    02/07/2015 02h00

    Na semana passada, trocamos duas palavras sobre a crase. O nosso mote foi um vídeo em que Caetano Veloso corrige a frase "Homenagem à Bituca", escrita pelo pessoal que trabalha com ele. No vídeo, Caetano explica com perfeição por que esse "a" não recebe o acento grave.

    Vamos ver outros casos espinhosos, que frequentemente aparecem com erro no emprego (ou na falta do emprego) do acento indicador de crase. Veja este: "Muita gente do mercado financeiro diz que a crise grega é semelhante à vivida pela Argentina no começo deste século, mas, salvo engano, a dívida argentina era inferior à do país europeu".

    Leia de novo o exemplo todo, por favor, e reflita sobre as duas ocorrências (corretíssimas) do acento indicador de crase ("...a crise grega é semelhante à vivida..." e "...a dívida argentina era inferior à do país europeu"). Não custa relembrar que "crase", palavra grega, significa "fusão, mistura". No português moderno, a fusão, ou seja, a crase da preposição "a" com um segundo "a" é marcada pelo acento grave (`).

    Em "...semelhante à vivida", a preposição "a" é regida pelo adjetivo "semelhante". Se uma coisa é semelhante, é semelhante A, não? Pronto! Já temos um "a". E o outro? Quer ir pelo caminho mais simples? É só "enxergar" que a palavra "crise" está implícita na sua segunda ocorrência. Vamos comprovar isso? Vamos lá: "...a crise grega é semelhante à crise vivida...". Já entendeu onde está o segundo "a"?

    Vamos tornar isso mais fácil? Que tal trocar o substantivo feminino "crise" por um masculino? Vamos lá: "...o desastre grego é semelhante ao vivido...". Percebeu? A troca de "crise" por "desastre" gerou a troca "de "à" (a + a) por "ao" (a + o).

    Vejamos o segundo caso ("...a dívida [...] era inferior à do país europeu"). Como explicar o "à", que, para "piorar", vem antes de "do", palavra masculina? Comecemos pela comprovação da existência do primeiro "a", que é sempre preposição: se algo é superior, é superior A, certo? Pronto! Um a zero! Mas esse jogo só se ganha de 2 a 0. Em outras palavras, onde está o segundo "a"?

    Se o caro leitor pensou bem, já deve ter concluído que o "a" em questão não vem antes de "do" ("superior à do país europeu"). Esse "a" vem antes de "dívida", palavra que também está subentendida: "...a dívida argentina era inferior à dívida do país europeu". Vamos pelo caminho mais simples? Temos de trocar o substantivo feminino "dívida" por um masculino, como "rombo": "...o rombo argentino era inferior ao do país europeu". Mais uma vez, vimos que o corretíssimo "à" (a + a) se transformou em "ao" (a + o).

    Alguém talvez esteja pensando que sempre que a forma "à" for correta será possível trocar a palavra feminina que vem depois dela por uma masculina, o que fará surgir a forma "ao". Não é bem assim, mas na maior parte dos casos é assim. Na verdade, essa troca é um recurso posterior ao entendimento do caso em si, que se consegue com a percepção da existência de "a + a".

    Em casos como o de "Vou à Bahia", por exemplo, é perigoso recorrer ao expediente da troca, já que não há uniformidade quanto ao uso dos artigos antes dos nomes dos estados brasileiros. Bahia, Paraíba, Paraná, Tocantins, entre outros, são usados com artigo (na/da/pela Bahia/Paraíba; no/do/pelo Paraná/Tocantins); Sergipe, Pernambuco, Mato Grosso, entre outros, são usados sem artigo (em/de/por Sergipe/Pernambuco/Mato Grosso).

    No caso de "Vou à Bahia", o melhor mesmo é entender que ocorre fusão (crase) da preposição "a", regida pelo verbo "ir" (ir A algum lugar), com o artigo "a", imposto pelo substantivo "Bahia". É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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