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    Pasquale Cipro Neto

    'Pra botar outro (,) malandro (,) no...'

    16/07/2015 02h00

    Dia desses (re)ouvi a antológica "Vai Trabalhar, Vagabundo", que o grande Chico Buarque compôs em 1976 para o filme homônimo, do saudoso e também grande Hugo Carvana. Fazia muito tempo que eu não ouvia essa música, cujo tema é atualíssimo –intemporal, na verdade.

    Na letra da canção, encontram-se estes versos: "Parte tranquilo, ó irmão / Descansa na paz de Deus / Deixaste casa e pensão / Só para os teus / A criançada chorando / Tua mulher vai suar / Pra botar outro malandro / No teu lugar".

    Como exige o contexto da letra, Chico escreveu os últimos três versos sem nenhuma vírgula. Postos em prosa, teríamos esta redação: "Tua mulher vai suar pra botar outro malandro no teu lugar". Dessa forma, "malandro" faz par com "outro"; a expressão "outro malandro" funciona como complemento da forma verbal "botar". Em suma, o que se diz é que a mulher do indivíduo em questão vai suar para botar outro malandro no lugar do agora ex-titular do posto. É claro que não se deve ignorar a possibilidade de haver boa dose de ironia na letra.

    Posto isso, pergunto: o que ocorreria se o termo "malandro" fosse posto entre vírgulas? Teríamos isto: "Tua mulher vai suar pra botar outro, malandro, no teu lugar". E então? Isso é possível? Sim e sim, caro leitor. O sentido sofre alteração? Sofre, sim. O termo "malandro" deixaria de fazer par com "outro" e passaria a constituir um vocativo, que, como se sabe, é o termo ao qual o emissor dirige a mensagem.

    É da natureza do vocativo a possibilidade de "passear" pela frase, sem que isso acarrete nenhum tipo de alteração de sentido. Esse passeio não pode ser desvinculado da pontuação, já que o vocativo é SEMPRE marcado com vírgula/s: "Malandro, tua mulher vai suar pra botar outro no teu lugar"; "Tua mulher, malandro, vai suar pra botar outro no teu lugar"; "Tua mulher vai suar, malandro, pra botar outro no teu lugar"; "Tua mulher vai suar pra botar outro no teu lugar, malandro". Para quem ainda acha que a vírgula é um instrumento pulmonar...

    É provável que você já tenha ouvido uma bobagem sobre o uso da vírgula, que diz que "a vírgula serve para respirar; cada vez que se respira, coloca-se...". Ai, ai, ai...

    Ainda sobre o tema "pontuação", veja este título, publicado terça-feira na Folha: "Renan diz que a PF invadiu imóveis do Senado; Collor, que foi humilhado". Por que a vírgula entre "Collor" e "que"? E por que foi empregado o ponto e vírgula?

    Comecemos pela vírgula, que nesse caso marca a elipse da forma verbal "diz", subentendida pela sua primeira ocorrência. Não houvesse a elipse, teríamos isto: "Renan diz que a PF invadiu imóveis do Senado; Collor diz que foi humilhado".

    E o ponto e vírgula? Separa dois blocos que são completos, independentes, e integram um mesmo conjunto, um mesmo assunto. É como escalar (à moda antiga) um time de futebol, em que os compartimentos são separados por ponto e vírgula: "Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson e Rivellino; Jair, Tostão e Pelé". Percebeu o papel do ponto e vírgula, caro leitor? O primeiro separa a defesa do meio de campo; o segundo, o meio de campo do ataque. E eu acabo de dar outro exemplo do que estava a explicar. E acabo também de suspirar de saudade desse timaço, que jogava uma bola com a qual os "craques" de hoje nem sonham. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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