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    Pasquale Cipro Neto

    'Você chove aqui, você não chove ali'

    13/08/2015 02h00

    Tá pensando que é só a presidente que se esforça para dizer pérolas do quilate de "diuturna e noturnamente"? Pode tirar o cavalinho da chuva. Como ocorre na estúpida disputa entre petistas e não petistas pela taça da boçalidade nas demonstrações de ódio, ignorância e selvageria, a coisa também é braba na produção de pérolas linguísticas.

    No último texto, mencionei o uso exagerado e, por isso mesmo, enfadonho do pronome "você" como generalizador, indefinidor, indeterminador, que se vê neste exemplo do "Houaiss": "Se você não paga a conta, eles cortam o fornecimento".

    Repito: o problema não está no uso em si, que, como se acaba de ver, é documentado. O problema está no uso repetitivíssimo, que, como tudo na vida, causa náuseas. Além disso, deve-se levar em conta o fato de que muitas vezes o falante usa esse "você" em situações em que o agente do processo nem de longe é indefinido ou indeterminado. No fim, a coisa tem mesmo é cheiro de embuste, disfarce ou coisa pior.

    Repito o exemplo da semana passada: "Se você perde o grau de investimento, você corre o risco de uma debandada dos capitais estrangeiros, aí você precisa tomar medidas mais drásticas do que você desejaria tomar". O caro leitor teria alguma dúvida para identificar os seres representados por cada um dos "vocês"? Parece que emitir a frase dura, nua e crua é perigoso...

    Vamos tirar a carapuça do emissor da pérola: "Se nós perdermos o grau de investimento, correremos o risco de uma debandada de capitais estrangeiros, aí precisaremos tomar medidas mais drásticas do que as que desejamos tomar". Esse "nós" obviamente inclui o emissor da frase, alta figura do governo federal de turno.

    Em vez de "nós", seria possível usar algo como "o Brasil", "o país", "o governo", mas isso pode aumentar a percepção do ouvinte e fazê-lo "enxergar" de vez qual é o verdadeiro agente do processo...

    O caro leitor certamente notou que a eliminação da carapuça não se restringiu à troca de "você" pelo agente determinado; passou, também, pela troca do vaselínico futuro do pretérito ("desejaríamos") pelo presente do indicativo ("desejamos").

    Há figuras que abusam tanto do "você", "você", "você" (não usam "eu" ou "nós" nunca de nunca!) que chegam a criar verdadeiras bizarrices. Dia desses, ao falar pela enésima vez sobre a "crise hídrica", altíssima autoridade do governo paulista disparou esta maravilha, ao explicar a diferença entre os níveis das diversas represas que abastecem a Grande São Paulo: "Você chove aqui, você não chove ali...". Genial! O cacoete é tão forte que o cidadão usa todos os verbos com o sujeito "você". E dá-lhe você, você, você!

    Em 1995, a Fuvest pediu aos candidatos que relacionassem uma imagem e alguns textos e escrevessem "uma dissertação em prosa, discutindo as ideias neles contidas...". A imagem era de um famoso quadro de Andy Warhol, em que se veem 25 reproduções de uma imagem de Marilyn Monroe. Um dos textos era do grande filósofo alemão Theodor Adorno: "Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem eu".

    No caso da Fuvest, os candidatos tinham de discutir sobre a anulação do "eu", da identidade, perdida em tempos em que a maioria das pessoas pertence a no mínimo um bando, qualquer que seja. No caso que abordei hoje, a questão é um pouco diferente, já que os exemplos mostram que não se trata propriamente da perda da identidade, do "eu", mas da sua viciada ocultação, às vezes intencional, covarde. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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