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    Pasquale Cipro Neto

    'A importância de se amamentar'

    03/09/2015 02h00

    Há uns bons anos, escrevi neste espaço sobre uma peça publicitária publicada por uma construtora em jornais e revistas. A frase era esta: "O charme de se morar bem". Escrevi sobre a absoluta, completa, plena, total, integral inutilidade do pronome "se" nesse tipo de construção linguística. Sugiro ao leitor que leia a frase sem o "se" e me diga o que acha do resultado. Vamos lá: "O charme de morar bem". Que tal?

    "O charme de se morar bem" é um mostrengo, um exemplo perfeito de mau gosto etc. Antes que alguém saia por aí generalizando, o que, no caso, equivaleria a dizer que o "se" ao lado de infinitivos é sempre ruim, digo logo que a coisa não é assim. Cada caso é um caso. Num texto escrito, ninguém eliminaria o "se" de frases como "Para se infiltrar em quadrilhas, um policial precisa..." ou "A fim de se habituar à altitude, o time paulista viajará...".

    Na frase publicitária, emprega-se o verbo "morar", que não é pronominal (como "infiltrar" e "habituar" nos exemplos citados), não se emprega na voz passiva e não se usa com pronome oblíquo de realce, o que ocorre, por exemplo, com o verbo "ir" ("Ele se foi para sempre").

    Pois bem. Há algumas semanas, mais exatamente no "Dia da Amamentação", um site publicou este título: "A importância de se amamentar". Assim que li o título, olhei para o meu peito e não vi úberes, seios fartos ou algo do gênero; quando muito, vi uma barriguinha um tanto avantajada... Concluí tristemente que não posso amamentar-me...

    O verbo "amamentar" normalmente é empregado como transitivo direto, o que significa que o seu processo começa em quem o executa, isto é, em quem amamenta, e termina em quem é amamentado. É por causa desse "trânsito" que o verbo é transitivo. Às vezes, um verbo transitivo é reflexivo, o que significa que o processo começa e termina em quem o executa ("Ele se mutilou", "Ela se maquiou"). Nesses casos, o "se" representa o elemento que funciona como paciente do processo, cujo agente é justamente o elemento que o "se" representa.

    Se fosse possível alguém ser o executor e o receptor do ato de amamentar, a frase "A importância de se amamentar" seria perfeita, mas, como isso (ao que parece) não ocorre... Que tal dizer/escrever pura e simplesmente

    "A importância de amamentar"? A frase não seria mais enxuta, mais concisa, mais elegante e, sobretudo, muito mais clara?

    Antes que alguém pergunte que fim levaria o complemento do verbo "amamentar" numa frase como "A importância de amamentar", digo que, em casos como esse, embora o verbo seja classificado por alguns como intransitivo, está subentendida a existência dos receptores do processo expresso pelo verbo (aqueles que são amamentados).

    Ninguém é imune a cochilos quando escreve. Ninguém. Certamente já perpetrei inúmeras maravilhas. Quando me dou conta delas, pela minha própria observação ou pela advertência de alguém, só me resta alterar, corrigir etc. Na semana passada, por exemplo, perpetrei esta maravilha, apontada por um leitor de Ribeirão Preto: "...começar pela (re)preparação dos professores e seguir pela reforma e/ou construção de escolas adequadas, pelo pagamento de salários decentes etc.".

    Percebeu, caro leitor? Acabei propondo a reforma de escolas adequadas... O que eu queria dizer era isto: "...e seguir pela reforma das escolas já existentes e pela construção de escolas adequadas...". Foi isso o que eu efetivamente disse? É claro que não. Pau no professor! É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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