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    Pasquale Cipro Neto

    'Eu é que decido'

    29/10/2015 02h00

    Estava na "capa" do UOL anteontem: "Eu é que decido". De acordo com o site, a frase foi dita pelo nobilíssimo deputado Eduardo Cunha, ao se referir aos pedidos de impeachment de Dilma Rousseff.

    A construção "Eu é..." incomoda muita gente. O fato é que esse "eu" não faz par com "é"; faz par com "decido", forma verbal da qual é sujeito. O "é" integra a expressão expletiva (de realce) "é que", invariável: "Eu é que sei quanto me custa aceitar isso"; "Os professores é que devem ir atrás da resposta".

    O caro leitor deve conhecer a canção "Só Nós Dois", imortalizada pelo querido e saudoso Nélson Gonçalves ("Só nós dois é que sabemos o quanto nos queremos bem"). Temos aí um exemplo da expressão de realce "é que". Note que é possível retirar a expressão, o que não prejudica a estrutura sintática, mas obviamente altera o tom que se dá à declaração ("Só nós dois sabemos o quanto nos queremos bem").

    Nos exemplos dados, essa expressão ocorreu entre o sujeito e o verbo. Há outro uso dessa forma, como se vê nestes casos: "É nessas horas que se vê quem realmente está do nosso lado"; "É nas regiões pobres que ficam mais evidentes a incompetência e a falência do Estado"; "É por essas causas que se deve lutar".

    Nos últimos exemplos, a supressão da expressão "é que" empobreceria muito o tom das declarações. Veja como ficariam: "Nessas horas se vê quem realmente está do nosso lado"; "Nas regiões pobres ficam mais evidentes a incompetência e a falência do Estado"; "Por essas causas se deve lutar". Percebeu?

    Na língua oral, há uma tendência para a flexão no plural da forma do verbo "ser" que inicia os últimos exemplos citados ("São nessas horas que se vê quem realmente..."). No padrão formal da língua, a construção dominante é a que citei antes ("É nessas horas que se vê...").

    Voltando ao caso inicial ("Eu é que decido"), é preciso tomar cuidado para não meter os pés pelas mãos. Como já vimos, nesse tipo de construção a expressão "é que" é fixa, invariável, e vem entre o sujeito e o verbo. Se o verbo "ser" for para a esquerda, ou seja, para antes do pronome ("eu", "nós", "eles") ou do substantivo ("os professores", num dos exemplos vistos), a coisa muda de figura. Nesse caso, o verbo "ser" concorda com o pronome ou com o substantivo: "Somos nós que sabemos o quanto nos queremos bem"; "Sou eu que sei quanto me custa aceitar isso"; "São os professores que devem ir atrás da resposta".

    A observação feita a respeito da flexão do verbo "ser" vale para qualquer tempo verbal: "Fui eu que resolvi esse problema"; "Fomos nós que fizemos o trabalho"; "Foram aqueles policiais que mataram o pedreiro". Na língua oral, quando o verbo "ser" é flexionado no pretérito perfeito, há uma forte tendência para a universalização do "foi" ("Não foi/Foi eu que..."; "Foi eles que..."; "Não foi nós que...").

    É sempre bom lembrar que, mesmo quando está explícito algo como "O culpado", "O responsável" etc., o verbo "ser" acaba concordando com o pronome pessoal ou com o substantivo que designa um ser humano: "Fui eu o responsável" (ou "O responsável fui eu"); "Foram aqueles policiais que mataram o pedreiro"; "Fomos nós os culpados" (ou "Os culpados fomos nós").

    Voltando aos poderes de Cunha, ele é que decide, é ele que decide etc. Então tá. Se de fato ele (ainda) crê nisso, deve ou deveria apressar-se. Até membros do alto clero das igrejas que seguem (seguiam?) e apoiam (apoiavam?) Cunha já estão pregando às claras a renúncia dele. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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