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    Pasquale Cipro Neto

    'Rouba, mas faz'

    12/11/2015 02h00

    Estação Sé do metrô de São Paulo, 18h e tal. Depois de deixar passar seis trens, sou "entrado" no vagão da frente, destinado aos "portadores de necessidades especiais", gestantes e idosos, os quais em todas as placas país afora são caracterizados como seres frágeis, gibosos, sustentados por uma bengala. Não é bem esse o meu caso, embora o RG me ponha no grupo...

    Mal as portas se fecham, um senhor de cabelos brancos puxa conversa com uma jovem. "Tá muito cheio, mas já pensou se o metrô não existisse? Se não fosse o Maluf..." A moça retruca: "O Maluf é ladrão". E o senhor: "Ele rouba, mas faz". A conversa continuou. Quando desci, cinco estações depois, o senhor ainda tentava convencer a moça de que Maluf é o tal ou, como diria Obama, é o cara. Libera nos, Domine!

    Vamos ao busílis: que diferença o caro leitor vê entre "Rouba, mas faz" e "Faz, mas rouba"? Não é difícil deduzir que a ordem das orações deixa claro o que o emissor da frase acha mais importante.

    Quem diz "Rouba, mas faz" não dá lá muita importância à existência da roubalheira, que, ao que parece, é vista como algo imanente ao processo político, à administração pública etc. O que importa é "fazer".

    Quem diz "Faz, mas rouba" põe em evidência o senão, a mácula, a nódoa, a roubalheira, embora reconheça que o gatuno "faz".

    Muita gente acha que o bordão foi criado quando Maluf ascendeu a cargos no executivo, mas isso é tão falso quanto dizer que foi ele que fez o metrô de São Paulo, o oceano Atlântico, a Lua, Marte e Plutão.

    O "rouba, mas faz" já era frase circulante no tempo de Adhemar de Barros (1901-1969). Lembro que, quando só comandava algumas prefeituras Brasil afora, o PT usava o bordão "Faz e não rouba". Rarará!

    É mister dizer que frases como "Rouba, mas faz" mostram que o roubo está nas entranhas do Brasil -nas engrenagens do Estado e no caráter de boa parte do povo. "Se fizer, pode até dar uma roubadinha" é o que está por trás do porco aforismo encampado por significativa parcela do "tal de povo brasileiro", como diria o grande Clóvis Rossi.

    Também é mister notar qual é o sentido que a turma do "Rouba, mas faz" dá ao "faz". Para essas pessoas (que, arrisco dizer, são majoritariamente da velha guarda), esse "faz" está sempre atrelado a "obras", ainda que sejam, por exemplo, viadutos que ligam o nada ao nada. O importante é "fazer". Com algumas (ainda poucas) exceções, cultura, educação e afins passam longe do "faz". "Não dão voto", dizem muitos dos nobres cavalheiros do PA, do PB, do PC, do PD, do PE, do PF, do PX e do PZ. Libera nos, Domine!

    Mas voltemos ao papel da oração que começa com o "mas". Esse conectivo integra o time das conjunções adversativas, lembra? Relembro a listinha: "mas, porém, contudo, todavia, entretanto...". Lembrou? Convém fazer algumas observações: no Brasil, uma frase como "Faz, entretanto rouba" é vista e entendida como equivalente a "Faz, mas rouba" (ou "Faz, porém/contudo/todavia/no entanto rouba").

    Em Portugal, não ocorre o uso de "entretanto" como conjunção adversativa, como no exemplo visto acima. Lá, "entretanto" ocorre como advérbio, equivalente a "entrementes", "nesse ínterim", "nesse meio-tempo" ("Houaiss"). Esse uso ocorre também no português do Brasil, em textos antigos. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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