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    Pasquale Cipro Neto

    'Jamais consentiria (...) nem permitiria'

    17/12/2015 02h00

    A coisa tá feia, tá braba e fica a cada dia mais feia, mais braba. O que também não para de aumentar é a incrível capacidade de tergiversar de muitos dos nossos próceres.

    Na terça-feira, em entrevista concedida depois da retumbante ação da Polícia Federal que atingiu diretamente o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o presidente do Senado, Renan Calheiros, reagiu um tanto atônito à extensão da ação da PF a alguns dos aliados dele. Renam concedeu uma entrevista em que, meio perdido, buscando as palavras, disse algo parecido com isto: "Jamais consenti, nem consentiria, jamais permiti, nem permitiria que alguém falasse em meu nome".

    Quem for a qualquer dicionário e procurar os verbos "consentir" e "permitir" verá que eles aparecem como sinônimos, mas uma análise etimológica dos dois pode revelar informações interessantes, que talvez não sejam perceptíveis imediatamente, mas talvez façam sentido.

    Não é preciso ir muito fundo para perceber que em "consentir" existe a ideia de "sentir junto". Quem procura a etimologia de "consentir" no "Houaiss" encontra isto, depois das informações sobre a origem latina desse verbo: "Ser de igual opinião, sentimento ou conduta; decidir de comum acordo; simpatizar com". Em "permitir", que também tem origem latina, o mesmo dicionário dá este sentido etimológico: "Dirigir para diante, impelir com força; entregar, permitir, autorizar".

    Se levar em conta a etimologia de "consentir", quem gosta de analisar as entrelinhas poderá dizer que a fala do presidente do Senado é reveladora: o sentimento é um só, ou seja, "formamos um grupo, indissolúvel, temos os mesmos 'ideais', mas quem fala por mim sou eu e quem conduz o passo (adiante, com força) também sou eu". Entenda-se "força" como bem se quiser...

    Alguém dirá que a etimologia é só um dos caminhos para que se entenda o sentido de uma palavra, já que, embora literalmente "etimologia" seja "estudo da origem", o seu sentido efetivo é "estudo da origem e da evolução das palavras".

    Por falar em etimologia (e já que citamos o nordestino Renan Calheiros), é sempre bom lembrar que a origem de "forró", que nomeia um ritmo igualmente nordestino, não é a que ainda se propaga Brasil afora ("for all", expressão inglesa que significa "para todos" e que nomearia um baile realizado para os empregados de uma obra realizada no Nordeste e gerenciada por uma empresa inglesa ou estadunidense).

    "Forró" é forma reduzida de "forrobodó", que os dicionários dão como equivalente a "baile popular, arrasta-pé, festança" e "confusão, tumulto, balbúrdia". Pensando bem, "forrobodó" (com a sua polissemia)pode muito bem definir a verdadeira quizumba em que estamos todos metidos neste país que de sério parece não ter mesmo nada de nada.

    Para não dizerem que não falei das flores, ou melhor, de um aspecto estritamente gramatical, lembro que o verbo "consentir" é irregular, tal qual "sentir". Na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, troca-se o "e" por "i" ("sinto", "consinto"), consequentemente todas as flexões do presente do subjuntivo terão esse "i" ("que eu sinta/consinta, que tu sintas/consintas, que nós sintamos/consintamos, que eles sintam/consintam").

    Que os deuses do bem consintam em que nos livremos desse espetáculo grotesco, repugnante. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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