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    Pasquale Cipro Neto

    'As Sufragistas'

    07/01/2016 02h00

    Movido pela indicação que o grande Juca Kfouri fez no seu blog no primeiro dia deste ano, corri para o cinema para ver "As Sufragistas", que é mesmo um filme formidável, como afirmou o próprio Juca.

    O título do filme me trouxe à mente um fato que me foi relatado pelo querido e saudoso João Paixão Netto, meu professor de filosofia no Colégio Estadual MMDC. Paixão, de quem me tornei amigo, era também tradutor de livros sobre teologia e filosofia. No fim da vida, publicou o maravilhoso "Aprender a Aprender", livro que professores e estudantes deveriam ler.

    Pois bem. Um belo dia, Paixão me disse que as editoras se queixavam dele quando empregava palavras "difíceis". Queriam que ele "simplificasse". Lembro que uma dessas palavras era "destarte" (ou a equivalente "dessarte", não lembro). "Mas isso é um livro culto, de filosofia", queixava-se o Mestre, que já era vítima do que não para de crescer neste país cada vez mais ignorante e limitado, de vocabulário que não passa de quinhentas palavras.

    "Dessarte" e "destarte", que significam "em sendo assim", "assim sendo", "desta maneira", ocorrem em textos clássicos e mesmo em autores mais recentes, como Bandeira.

    Pois bem. Fiquei pensando se não terá havido uma comichão para a troca de "As Sufragistas" ( "Suffragette", no original) por algo mais "simples", mais popular etc. Quantas pessoas sabem responder de pronto o que é "sufragista" ou de que palavra esse termo deriva?

    Felizmente (talvez por influência do título original), a versão brasileira acabou se chamando mesmo "As Sufragistas", o que no mínimo desperta ou deveria despertar a curiosidade sobre o sentido desse termo ou de "sufrágio", do qual deriva.

    Mas afinal o que significam "sufrágio" e "sufragista"? "Sufrágio" é "processo de escolha por votação"; "eleição"; "voto em uma eleição". O sufragista é adepto do voto e defende a extensão dele a todas as pessoas, sem restrição alguma.

    Na verdade, há uma questão histórica por trás disso, que, não por acaso, está presente em todos os dicionários na definição de "sufragista", em geral como último item. Trata-se da referência àquilo que é justamente o objeto do filme, o movimento das mulheres inglesas em 1912 pelo direito de votar, o que só foi conquistado alguns anos depois.

    E de onde vem a palavra "sufrágio"? Qual é a sua origem? Será que a terminação "-frágio", igual à de "naufrágio", é apenas uma coincidência? Não é não, caro leitor. Essa terminação latina se prende à ideia de algo que se quebra, que é quebradiço. Ao pé da letra, o "naufrágio" é a "quebra" de uma nau.

    E "sufrágio"? Essa palavra resulta da soma da partícula "sub-" ("embaixo") com o radical "frag-", já comentado. O meu dicionário etimológico italiano diz que isso provavelmente faz referência a pedaços de terracota, sob os quais se marcava o voto em tempos idos.

    Ao pé da letra, o sufrágio está ligado à ideia de quebra, da quebra da cerâmica que servia como "cédula". Não resisto à tentação de estender essa ideia de quebra à brutalidade de que foram vítimas as mulheres inglesas em 1912. O rosto, as costas, as pernas delas foram quebrados por uma polícia que, como bem notou o grande Juca, lembra as nossas, mais de cem anos depois. Até nesse "quesito" estamos atrasados... É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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