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    Pasquale Cipro Neto

    Amores eventuais

    21/01/2016 02h00

    Já faz um bom tempo que não me valho de títulos jornalísticos "estranhos" para traçar as linhas deste espaço. Entra ano, sai ano, entra título, sai título, e a coisa não muda.

    Há poucos dias, um site de notícias publicou esta maravilha: "Madonna diz que durante evento ainda ama Sean Penn". É isso mesmo, prezado leitor. Não me enganei, não: "Madonna diz que durante evento ainda ama Sean Penn".

    Os tempos são complicados, eu sei; a "qualidade das relações" (leu a recente pesquisa sobre a vida na cidade de São Paulo?) não anda lá essas coisas, de acordo com o que disseram os entrevistados, mas, cá entre nós, amar só durante um evento parece estrambótico demais...

    É claro que houve equívoco do redator, que teria evitado o problema com a simples reordenação dos termos ("Madonna diz durante evento que ainda ama Sean Penn"), mas, como não se trata de caso isolado ou esporádico, fica-se com a impressão de que o cuidado com o texto é fator cada vez menos importante.

    Às vezes, os erros ficam expostos o dia todo nos sites, o que significa que ninguém relê os textos, ou, se os relê, não capta os erros, o que é ainda mais grave. A mesma situação ocorre em boletins radiofônicos de várias emissoras, repetidos à exaustão ao longo do dia, muitas vezes com o texto rigorosamente igual.

    O título deve ser claro, conciso e, sobretudo, não pode exigir do leitor contorcionismos para a sua imediata compreensão. Veja este caso, também recente: "País sabe que escraviza, mas não a gravidade do problema". Estava no mesmo site, como chamada para o texto de um querido blogueiro, do qual sou leitor quase fiel. Há duas ocorrências do verbo "saber" no título, uma explícita e outra implícita. O que se quer dizer é que o país sabe que é escravista, mas não sabe qual é a gravidade do problema.

    Mostrei o título a vários colegas. Nenhum deles disse que captou de imediato a mensagem, isto é, todos disseram que foi preciso algum contorcionismo para compreendê-lo, o que significa que para eles (e para mim) o título é ruim, ineficiente.

    Esse é o típico caso em que a repetição é praticamente imperativa ("País sabe que escraviza, mas não sabe a gravidade do problema"). Melhor mesmo seria perceber que há uma sutileza de sentido que quase impõe a troca do segundo "sabe" por "conhece" ("País sabe que escraviza, mas não conhece a gravidade do problema"). Lamentavelmente, a velha máxima das redações que diz que "título bom é título que cabe" parece imorredoura.

    Há outro fato que merece comentário. Qual é o complemento do primeiro "sabe", ou seja, o que é que o país sabe? Eis a resposta: "que escraviza". Sim, o complemento do primeiro "sabe" é "que escraviza", que, como se vê, é uma oração, já que contém verbo ("escraviza").

    E o complemento do segundo "sabe"? É "a gravidade do problema", que, como se vê, não é uma oração.

    Se você vai fazer ou já fez algum concurso público, talvez tenha visto no programa de português algo como "paralelismo". Pois o que torna ruim o título é justamente a falta de paralelismo (dois complementos de natureza diferente).

    Por acaso você diria algo como "Ela me espera em casa e que eu vá ao cinema com ela"? Ou "Ele sabe que deve cozinhar, mas não a receita do prato"? Há ruído, não? É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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