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    Pasquale Cipro Neto

    'Nada haver'

    04/02/2016 02h00

    Almocei com um mais do que querido amigo (e colega). É claro que era quase obrigatório falar do triste quadro deste infame país. Como bem disse o dileto amigo, "no Brasil, o fundo do poço tem porão". Não nos faltaram referências ao besteirol destilado por petralhas e coxinhas nas redes antissociais.

    E tocamos num ponto paradoxal: esse besteirol inclui a autoatribuída proficiência em língua portuguesa... Com grosseiros erros de português, coxinhas chamam petralhas de analfabetos (e vice-versa). Tem-se a impressão de que as nobres redes antissociais são frequentadas exclusivamente por profundos conhecedores do idioma nacional...

    Um dos casos que o meu querido Sérgio mencionou foi o "Nada haver", que, diz ele, volta e meia aparece como "comentário" relativo ao que disse alguma sumidade. Nada a ver (ou nada que ver), caro leitor.
    Quando se quer dizer que certo fato tem ou não tem relação com outro, as expressões que se usam são "Isso/Isto (não) tem que ver com aquilo", "Isso/Isto nada tem que ver com aquilo" ou "Isso/Isto (não) tem a ver com aquilo", "Isso/Isto nada tem a ver com aquilo".

    Vou poupar o leitor das diatribes que ocorrem entre os partidários de cada uma das possibilidades. Na verdade, ninguém "condena" a forma "Isso (não) tem que ver com aquilo"; há quem condene "Isso (não) tem a ver com aquilo, por razões que não valem grande coisa.

    As duas formas são equivalentes. Como bem diz Maria Helena de Moura Neves, em seu "Guia de Uso do Português", a construção "Isso (não) tem a ver" predomina.

    Poder-se-ia pensar na expressão "Nada a haver", mas isso é outra história. Seria algo equivalente a "nada a receber de volta"; "nada a reaver". Poder-se-ia pensar também em algo como "Nenhum haver", que também é outra história. Nesse caso, "haver" é substantivo e equivale a "crédito". Com esse sentido, é mais comum o plural: "Consultou, esperançoso, a coluna dos haveres" ("Aulete"). "Haveres" se usa também para designar os bens, o conjunto de bens, as posses etc.

    Posto isso, não resisto à tentação de tentar enobrecer o cada vez mais tosco diálogo entre coxinhas e petralhas. Explico: a conversa sobre "nada a haver", "nenhum haver" etc. me trouxe à mente um antológico poema de Vinicius de Moraes. Sabe qual é, caro leitor? É "O Haver", escrito há mais de 50 anos.

    Destaco duas estrofes, que me tocam profundamente e que despretensiosamente ofereço a coxinhas, petralhas e a quem mais esteja envolvido nessa infame e insana batalha pela taça da estupidez. Ofereço também, é claro, a todos os canalhas que diariamente fazem o país mergulhar na lama, via petróleo, merenda etc., etc., etc.

    Vamos lá, pois, não sem antes relembrar o nome do poema ("O Haver"): "Resta essa vontade de chorar diante da beleza / Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido / Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa / Piedade de si mesmo e de sua força inútil. / Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado / De pequenos absurdos, essa capacidade / De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil / E essa coragem para comprometer-se sem necessidade".

    Chorem diante da beleza, que ainda a há, canalhas e pobres de espírito do Brasil. Sejam úteis! É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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