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    Pasquale Cipro Neto

    'Em velocidade superior à do PIB'

    18/02/2016 02h00

    Na semana passada, tratei de um caso básico do emprego do acento grave, que é o acento indicador da ocorrência de crase. Parti da simplicíssima construção "Parabéns a você", em cujo "a", como vimos, não se justifica o acento grave.

    Não custa relembrar: "crase" é palavra de origem grega e significa "fusão", "mistura". Em gramática, quando se fala de crase, fala-se da fusão de duas vogais iguais.

    Diferentemente do que se pensa, a crase não se refere apenas a casos como o de "Vá à feira" ou "Diga à diretora que...", em que o "à" resulta da fusão da preposição "a" com o artigo feminino "a". Ocorre crase em outros casos. Um deles se vê no processo de formação de algumas das nossas palavras.

    Na "história" do substantivo "cor", por exemplo, ocorreu crase, já que a forma latina "colore" evoluiu para "coor" e depois para "cor". Na passagem de "coor" para "cor", houve crase (fusão), já que o grupo "oo" passou a "o". No português arcaico, "crer" era "creer", portanto...

    Esses casos de crase não são marcados com o acento grave. O que se marca com esse acento é a fusão da preposição "a" com um segundo "a", que, como afirmei na semana passada, em 99% dos casos é o artigo definido feminino "a".

    Muita gente me escreveu para perguntar sobre esses 99%: "Se o segundo 'a' não é sempre artigo, o que mais ele pode ser, professor?".

    Vejamos. Num caso como o de "Diga àqueles jovens desocupados que respeitem as figuras gloriosas do Brasil", o acento que ocorre em "àqueles" (mais que correto) resulta da fusão da preposição "a", regida pelo verbo "dizer" (dizer a alguém), com a letra "a" que inicia o pronome demonstrativo "aqueles".

    "Mas 'aqueles' não é palavra masculina?", perguntarão alguns. E daí? Quem foi que disse que o acento grave em "àqueles" ocorre antes de uma palavra masculina? Esse acento ocorre na própria palavra "àqueles" e não antes dela.

    Vejamos agora um caso enviado por um leitor, que perguntou sobre o acento no "a" antes de "do PIB" numa frase extraída de texto jornalístico. O caso era este: "...a despesa nessa área tem avançado em velocidade superior à do PIB".

    E então, caro leitor? Esse acento é correto? É mais do que correto. O que temos aí é simplesmente isto: "...a despesa nessa área tem avançado em velocidade superior à (velocidade) do PIB". Como se vê, o "à" não ocorre antes de expressão masculina, mas antes de uma palavra feminina, subentendida, implícita.

    Um teste simples pode ser feito com o emprego do velho truque da substituição. No caso, substitui-se o substantivo feminino "velocidade" por um masculino, como "ritmo". O que se obtém? Vamos ver: "...a despesa nessa área tem avançado em ritmo superior ao do PIB".

    E então? O caro leitor notou que a troca do termo feminino por um masculino da mesma classe gramatical fez o "à" dar lugar a "ao"?

    Essa observação sobre a necessidade de manutenção da classe gramatical do termo substituinte não é gratuita. Não adianta trocar, por exemplo, "ela" por "rapaz", num caso como "Diga a ela que...". A troca de "ela" por "rapaz" faria surgir o termo "ao", mas quem foi que disse que "ela" e "rapaz" são da mesma classe gramatical? "Ela" é pronome reto, portanto a troca é feita por "ele" ("Diga a ele que..."). É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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