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    Pasquale Cipro Neto

    A Coreia do Norte cabe em mísseis?

    10/03/2016 02h00

    Neste espaço, já citei mais de uma vez uma das dez coisas que o historiador José Murilo de Carvalho disse que deveria fazer antes de morrer ("Aprender a usar o infinitivo"). Isso foi publicado nesta Folha, em 2004, como resposta ao que se pediu a algumas personalidades ("Dez coisas para fazer antes de morrer").

    Como se sabe, o infinitivo é mesmo uma pedra no sapato de 101% dos falantes de português. Não há quem nunca tenha ficado em dúvida entre flexionar ou não flexionar o danado. Em palavras pobres, o infinitivo é o próprio verbo, do jeito que aparece no dicionário ("amar", "beijar", "sofrer", "partir" etc.).

    O nó está justamente na hora de flexionar (ou não) o infinitivo: "A virginal oposição faz o possível para os desmemoriados brasileiros acreditarem que a bandalheira no país começou com a chegada do PT ao poder" ou "A virginal oposição faz o possível para os brasileiros acreditar que a bandalheira no país começou com a chegada do PT ao poder"? Ou tanto faz? Ou depende?

    Nesses exemplos, a decisão entre flexionar ou não flexionar o infinitivo não depende de nada. O caso é clássico: o infinitivo tem sujeito próprio, diferente do sujeito do verbo anterior. O verbo anterior é "faz", cujo sujeito é "a virginal oposição". O sujeito do infinitivo é "os desmemoriados brasileiros", portanto...

    Portanto o infinitivo deve concordar com o seu sujeito, sem choro nem vela: "A virginal oposição faz o possível para os desmemoriados brasileiros acreditarem que...".

    Quando o sujeito do infinitivo é igual ao do verbo da oração principal, a flexão (ou não) do infinitivo depende do que se queira enfatizar. Vejamos estas duas construções, ambas corretas e possíveis, mas não equivalentes: "Os deslumbrados da situação fazem o possível para convencerem a população de que a roubalheira na Petrobras é pura invenção"; "Os deslumbrados da situação fazem o possível para convencer a população de que a roubalheira na Petrobras é pura invenção".

    O sujeito de "fazem" é "os deslumbrados da situação", certo? E qual é o sujeito de "convencer"? É o mesmo, não? Afinal, são eles que querem convencer a população, certo? Aí entra em cena o que decide a questão: o que se quer enfatizar?

    Se a ênfase recai sobre o processo expresso pelo infinitivo, nada de flexão: "Os deslumbrados da situação fazem o possível para convencer...". Se a ênfase recai sobre o agente do processo expresso pelo infinitivo, opta-se pela flexão: "Os deslumbrados da situação fazem o possível para convencerem...".

    Posto isso, vamos a um título publicado anteontem num site: "Coreia do Norte diz ter reduzido ogivas nucleares para caber em mísseis". Tomado ao pé da letra, o título informa que a Coreia do Norte fez o que fez para caber em mísseis.

    Sim, para ela, Coreia do Norte, caber em mísseis. Essa Coreia é a daquele ridículo tiranete, ótimo exemplo para os ridículos daqui que querem uma ditadura. Como obviamente o que se queria informar era outra coisa (decerto queria informar-se que o infame reduziu as ogivas para que elas coubessem nos mísseis), a construção adequada seria outra: "Coreia do Norte diz ter reduzido ogivas nucleares para caberem em mísseis". Talvez fosse melhor esta forma: "Coreia do Norte diz ter reduzido ogivas nucleares para que coubessem em mísseis". É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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