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    Pasquale Cipro Neto

    'Ouvir um sabiá com certidão de idade'

    31/03/2016 02h00

    Neste espaço, já citei mais de uma vez um ou outro verso do antológico poema "Canção do Exílio", do pouco conhecido poeta mineiro Murilo Mendes. Digo "pouco conhecido" porque a grandiosidade da sua obra é mais do que suficiente para que ele fosse estudado Brasil afora, mas...

    Antes que alguém pergunte, aviso que não me enganei. Não se trata da célebre "Canção do Exílio" do poeta maranhense Gonçalves Dias ("Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá"); trata-se de uma das tantas paródias desse poema.

    Muitos consideram exageradamente ufanista a obra de Gonçalves Dias, a qual, talvez justamente por isso, ganhou inúmeras paródias de grandes poetas brasileiros, quase todas de tom irônico, crítico etc.

    Uma dessas paródias é justamente a de Murilo Mendes (1901-1975), um autoexilado. O poeta saiu do Brasil em 1953 e ficou pela Europa até a morte, em Portugal. Murilo Mendes foi professor de literatura brasileira em Roma e em Lisboa.

    Escrita há quase cem anos, a "Canção do Exílio" de Murilo começa com estes versos: "Minha terra tem macieiras da Califórnia / onde cantam gaturamos de Veneza". A correta leitura desses versos exige algum conhecimento geográfico, vocabular e (ai-jesus!) a aceitação da existência da figura da ironia.

    Cá entre nós, a percepção da ironia nunca foi algo líquido e certo, ou seja, há muita, mas muita gente que leva tudo ao pé da letra, o que torna impossível a compreensão de figuras como a ironia, a hipérbole etc.

    A ironia consiste basicamente em dizer algo que, no contexto, assume sentido oposto ao convencional. Quando Murilo diz "Minha terra tem macieiras da Califórnia", quer dizer que sua terra (a nossa, o Brasil) NÃO tem macieiras da Califórnia. Obviamente, nessas inexistentes macieiras que "ficam" no Brasil não cantam gaturamos, muito menos os de Veneza. O gaturamo é um maravilhoso pássaro sul-americano...

    Então o que quererá dizer Murilo com esses versos? Qualquer semelhança com a nossa velha adoração gratuita e deslumbrada pelo estrangeiro não é mera coincidência...

    Outros versos do poema confirmam esse sentimento e a ironia que permeiam a obra. Vejamos este: "Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda". Note o contraste entre a brasileiríssima palavra "sururu" e "Gioconda". Imaginemos a cena: a família quebra o pau, e a estrangeira Gioconda, "pendurada" na sala para indicar bom gosto, "erudição", contempla a baixaria, com o seu sorriso escarninho, enigmático...

    Outra passagem memorável, intemporal, atual: "A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos". Oradores (qualquer semelhança com o blá-blá-blá que nos assola) e pernilongos são postos no mesmo nível: fazem barulho, mas...

    E lá vem o grande Murilo Mendes, que assim encerra o magistral poema: "Eu morro sufocado / em terra estrangeira. / Nossas flores são mais bonitas / nossas frutas mais gostosas / mas custam cem mil réis a dúzia. / Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade / e ouvir um sabiá com certidão de idade!".

    Como já afirmei diversas vezes neste espaço, a arte precede a realidade... Note a relação que o Poeta estabelece entre a carambola e a maçã. E o sabiá? Onde andarão os nossos "sabiás com certidão de idade"? Já sei: estão no Congresso, no Planalto, nos executivos e legislativos estaduais e municipais. É isso.

    inculta@uol.com.br

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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