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    Pasquale Cipro Neto

    O 'outrem' e o 'nós' de Temer

    14/04/2016 02h00

    Muito já se falou sobre o "exercício" de Temer que "vazou" no início da semana e sobre a impressionante capacidade que essa gente tem para inventar razões para certos atos.

    Parece-me, no entanto, que um ponto do "treinamento" de Temer passou despercebido. Transcrevo a passagem em questão: "... eu sei que dizem de vez em quando que, se outrem assumir, nós vamos acabar com o Bolsa Família, vamos acabar com o Pronatec, vamos acabar com o Fies. Isto é falso. É mentiroso".

    Por favor, releia o trecho que transcrevi, com atenção especial para a palavra "outrem". Imagino que boa parte dos leitores saiba o que significa "outrem", mas não custa transcrever o que registra o "Houaiss": "Pessoa que não participa do processo de comunicação e cuja menção é imprecisa ou indefinida (seja porque o falante não sabe, seja porque não lhe interessa dar a indicação precisa); outra pessoa".

    A julgar pelo uso que Temer fez de "outrem", o brilhante pessoal do Instituto Houaiss será obrigado e dar outra redação à definição desse pronome, a começar pelo tipo de pronome. O "Houaiss" diz que outrem é pronome indefinido, mas Temer, inexorável, acaba com isso.

    Bem, para quem ainda não entendeu o que expliquei no parágrafo anterior, lá vai: Temer disse que sabe que de vez em quando dizem que, "se outrem assumir, nós vamos acabar com o Bolsa Família...".

    Quem leu com atenção o trecho destacado notou que o "outrem" de Temer se tornou "nós" imediatissimamente. Temer nem se vale do recurso da ocultação do sujeito de "vamos", o pronome reto "nós", que poderia ter ficado implícito na desinência dessa flexão verbal.

    Em outras palavras, o "outrem" de Temer não é o que está no "Houaiss" ou nos outros dicionários; é mesmo o definidíssimo "nós", ou, como diria a galera, "é nóis" (ou, melhor ainda, "É nóis, mano!"). Como diria o impagabilíssimo Osmar Lins, do PAN (Partido dos Aposentados da Nação), "Peroba neles!".

    Mas voltemos ao "aquecimento" de Temer e suponhamos que ele não tivesse empregado "outrem". Teríamos algo semelhante a isto: "... eu sei que dizem de vez em quando que, se assumirmos, nós vamos acabar com o Bolsa Família...". Se assim tivesse sido, alguém poderia dizer que Temer teria se valido do plural majestático, que se caracteriza quando uma autoridade emprega "nós" no lugar de "eu", por exemplo.

    Modéstia? Sim, de fato Temer fala em modéstia em outra passagem do seu "treinamento": "...muitos me procuraram para que eu desse pelo menos uma palavra preliminar à nação brasileira, o que eu faço, com muita modéstia, com muita cautela, com muita moderação...".

    A modéstia de Temer é patente e inquestionável, sobretudo quando se leva em conta o que o ainda vice-presidente disse sobre as declarações do ministro Ricardo Berzoini a respeito da fala de Temer. Lá vai: "Certas afirmações não merecem, digamos assim, a honra da minha resposta". Haja modéstia!

    A sucessão de patacoadas que os nossos brilhantes homens públicos (da situação e da oposição) têm proferido é de chorar, é, literalmente, desesperadora. Lamento dizer, mas esse é o mais fiel retrato da verdadeira nação que somos, "primitiva", como bem disse o grande Clóvis Rossi em recente artigo. O que o discurso dessa gente deixa escapar é só uma nesga da barbárie. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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