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    Pasquale Cipro Neto

    'Tudo o que dizes ou digas...'

    28/04/2016 02h00

    O mote da coluna da semana passada foi a relação que me ocorreu entre os inesquecíveis pronunciamentos dos nossos cândidos deputados federais na sessão de 17/04 e o magnífico texto "A Igreja do Diabo", de Machado de Assis. Havia muito mais a dizer, particularmente em relação à elaboração linguística do grande Machado, mas o espaço...

    Sob esse aspecto, uma das passagens que merecem comentário é esta, em que Deus diz o seguinte ao Diabo: "Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie (...). Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires".

    Note a passagem "Tudo o que dizes ou digas". Por que o emprego de duas formas do mesmo verbo ("dizer"), ambas do mesmo tempo (presente), mas de modos distintos? Tradução: "dizes" é do presente do modo indicativo; "digas" é do presente do modo subjuntivo. O que explica o emprego dessas duas formas?

    Pois bem. A forma "dizes", do presente do indicativo, põe o ato de dizer no plano da realidade, do que ocorre, do que é fato. Quando diz ao Diabo "Tudo o que tu dizes", Deus se refere ao que o Diabo efetivamente diz, está dizendo ou costuma dizer. Quando diz "ou digas", Deus põe o ato de dizer no plano da hipótese, da probabilidade. Ele não se refere àquilo que o Diabo diz, está dizendo ou costuma dizer, mas ao que porventura venha a dizer.

    Essa diferença entre o indicativo e o subjuntivo cria importantes sutilezas, que muitas vezes o leitor não percebe. Quando se diz, por exemplo, algo como "Estima-se que boa parte dos nossos congressistas está mergulhada na lama", revela-se, com a opção pela forma "está" (do modo indicativo), que há mais certeza do que dúvida em relação à chafurdice de parte dos nossos nobres e ínclitos representantes.

    Quando se diz "Estima-se que boa parte dos congressistas esteja mergulhada na lama", revela-se, com a opção por "esteja" (do modo subjuntivo), que há mais dúvida do que certeza em relação à enlameadura de parte dos nossos parlamentares.

    Como vimos, não se trata (nem de longe) de uma tola definição sobre o "certo" e o "errado". As duas construções são certas, mas não é o caso de dizer pura e simplesmente que "tanto faz". Tanto faz coisa nenhuma! Nesses casos, a expressão adequada é "depende", já que, como vimos, a escolha (consciente) pode indicar a posição que o falante/emissor tem a respeito do que aborda.

    É bom citar também que muitas vezes a opção (consciente) entre o indicativo e o subjuntivo leva em conta o desejo de não se expor. O falante tem mais certeza do que dúvida, mas prefere a "neutralidade" e opta pelo subjuntivo ("esteja", no caso).

    Voltando ao texto de Machado, alguém poderia querer empregar "disseres", do futuro do subjuntivo, no lugar de "digas" ("Tudo o que dizes ou disseres"). Parece claro que com essa construção a afirmação não teria o mesmo alcance ou abrangência, já que o futuro do subjuntivo não teria a mesma amplitude do presente do subjuntivo.

    Lamentavelmente a escola costuma limitar a conversa sobre os verbos a uma enfadonha decoreba ("eu tal, tu tal, ele tal, nós tal..."). Pouco ou nada se fala do valor específico e dos outros valores de cada um dos tempos e modos verbais. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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