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    Pasquale Cipro Neto

    'Dos filhos deste solo és mãe gentil'

    05/05/2016 02h00

    Rebuscadíssima, a letra do nosso hino nacional foi escrita por Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927); a melodia foi composta por Francisco Manuel da Silva (1795-1865). Como se vê, os coautores do nosso hino não se conheceram.

    Para muita gente, a dificuldade se manifesta logo no início da letra, escrita em ordem mais do que indireta. Vou direto ao ponto: tente encaixar na melodia os dois primeiros versos, mas dispostos na ordem direta. Talvez seja melhor dizer que a ordem direta seria esta: "As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico". Sim, foi isso que você cantou a vida inteira, talvez sem saber que é essa a ordem direta e, portanto, talvez sem saber o que significam os dois versos iniciais do hino.

    E por que me referi ao hino nacional? Razões (muitas) para isso certamente não faltam. Poder-se-ia falar dos manifestantes pró e contra, que sempre entoam o hino nacional, talvez como prova de que são eles os verdadeiros patriotas ou de que a razão está com eles etc.

    Poder-se-ia também falar dos tempos da ditadura militar, quando cantávamos o hino nacional com a vã esperança de escapar da violência policial nas manifestações por liberdade, democracia etc. Aliás, a julgar pelo que fazem hoje as PMs de governos estaduais dos mais diversos matizes "ideológicos", poder-se-ia concluir que a ditadura militar não acabou. Com hino e tudo, a borracha fala mais alto, com o beneplácito de governos "democráticos".

    Mas o mote é outro. Como domingo é Dia das Mães, lembrei-me desta passagem, também escrita na ordem indireta: "Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil". Não é preciso muito esforço para perceber que, na ordem direta, a passagem "Dos filhos deste solo és mãe gentil" passaria a "És mãe gentil dos filhos deste solo". Tente encaixá-la na melodia e diga-me o que ocorreu. Não deu certo, deu?

    Deixo com você a reflexão sobre a afirmação da letra de que a nossa pátria é mãe gentil dos filhos deste solo. É mesmo gentil essa mãe com a maior parte dos seus filhos?

    Cabe aqui outra reflexão: a letra diz que a pátria é mãe. Você já parou para pensar no "paradoxo" que há na combinação "pátria/mãe"? Se recorrermos à etimologia, veremos que "pátria", que vem do latim, é da mesma família de "pai", "paterno", "paternidade" etc.

    Os mais maledicentes talvez digam que nem juntando pai e mãe a pátria amada consegue ser gentil com boa parte dos seus filhos...

    Na sua antológica canção "Língua", Caetano Veloso diz assim: "A língua é minha pátria, e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria"... Genial, não? Acho que não é preciso explicar os versos, certo?

    Encerro com alguns versos do belíssimo poema "Para Sempre", de Carlos Drummond de Andrade: "Morrer acontece / com o que é breve e passa / sem deixar vestígio. / Mãe, na sua graça, / é eternidade. / Por que Deus se lembra / mistério profundo / de tirá-la um dia? / Fosse eu Rei do Mundo, / baixava uma lei: / Mãe não morre nunca, / mãe ficará sempre / junto de seu filho / e ele, velho embora, / será pequenino / feito grão de milho".

    Entre a mãe que, para mim, desde sempre não existe (aquela do hino) e a mãe exaltada por Drummond (a minha, a sua, a de muita gente), fico com a segunda. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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