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    Pasquale Cipro Neto

    A mesóclise de Temer

    19/05/2016 02h00

    "Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro."

    Escrito por Oswald de Andrade (1890-1954), o célebre poema que você acaba de ler chama-se "Pronominais". Nele o grande escritor paulista mostra o embate entre a colocação pronominal "tradicional" (da gramática do professor, do aluno e do mulato sabido) e a realmente usada pelo "bom negro" e pelo "bom branco da Nação Brasileira".

    Na verdade, o embate vai muito além disso, já que os modernistas pregavam o "descobrimento" do Brasil pela arte que se fazia no país, o que obviamente incluía as peculiaridades do português brasileiro.

    Pois ainda hoje, passadas boas décadas da publicação de "Pronominais", muita gente ainda acha que, qualquer que seja a situação, é imperativo empregar a colocação pronominal lusitana, na qual, diferentemente do que ocorre na nossa, predomina a ênclise ("Ela disse-me que..."). No falar brasileiro predomina a próclise ("Ela me disse...").

    Na hora da escrita, no entanto, talvez por influência maléfica da escola, o brasileiro tende a artificializar a colocação e acaba "cometendo" frases como esta, que vi num ônibus: "A chave não encontra-se...". "Não encontra-se"? Então tá.

    E a mesóclise? Essa é para "arrasar". Oradores dos mais diversos matizes adoram empregá-la. "Pega bem", pensam. Na escrita pretensamente formal, muitas vezes ela é perpetrada em casos em que no padrão formal ela não costuma ocorrer.

    Um desses casos se vê nos convites de casamento, ainda feitos à moda da tetravó. Neles, é indefectível a passagem "...para a cerimônia que realizar-se-á...". Na linguagem culta, normalmente ocorre a próclise quando se emprega um pronome relativo (o "que", no caso do convite): "...cerimônia que se realizará...".

    Salvo engano, a Constituição de 1988 não apresenta nenhuma mesóclise, por obra do seu revisor, ninguém menos do que o brilhante filólogo Celso Cunha, falecido em 89. Também salvo engano (e também por obra do Cunha bom), não há na Constituição nenhuma passiva sintética, do tipo "Assegurar-se-ão às presidiárias condições para que possam...". O texto da Constituição é este: "Às presidiárias serão asseguradas condições para que...". Celso Cunha disse que assim procedeu para tornar o texto mais compreensível para a maioria da população.

    Não tenho nada contra a mesóclise. Acho-a "charmosa", às vezes elegante e perfeitamente utilizável em determinados contextos.

    Pois bem. Na semana passada, no discurso que fez na posse do seu ministério, Michel Temer sapecou uma mesóclise ("...sê-lo-ia pela minha formação..."). Sapecou também algumas ênclises inusuais, como esta, em que tropeça na concordância: "Olha aqui, vocês, que vão ocupar os poderes, exerçam-no com harmonia porque são órgãos...".

    A forma adequada seria "exerçam-nos", já que o pronome "os" retoma "poderes". Esse "os" passa a "nos" para se adaptar fonologicamente à forma verbal "exerçam".

    É de notar que, no discurso, Temer tentou conciliar o tom informal com a linguagem formal. Essa conciliação exige a travessia de águas muitas vezes turbulentas, o que pode expor flancos que o orador talvez não quisesse expor. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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