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    Pasquale Cipro Neto

    '...e que meu lar é um/o botequim'

    09/06/2016 02h00

    O caro leitor certamente sabe que títulos jornalísticos não começam com artigo definido. Sabe também que no interior dos títulos o uso desse tipo de artigo depende de algumas condições, o que muitas vezes gera dúvidas (nos leitores e nos redatores), sobretudo quando se trata de empregar ou não o acento indicador de crase (o acento grave).

    Há algumas semanas, um site publicou este título: "Após flagrar traição de mulher, taxista morre em troca de tiros com rival". O clique no título remetia à matéria sobre o caso, cujo título era um pouco diferente: "Taxista flagra traição de mulher e morre em troca de tiros com rival".

    Que mulher foi flagrada pelo taxista? Sabemos todos que a palavra "mulher" não tem apenas um significado. Sabemos também que é desnecessário explicar a diferença em casos como "A mulher dele é corajosa" e "Aquela mulher é corajosa".

    Nos títulos citados, parece claro que se quer informar que o taxista flagrou a própria mulher, e não uma mulher não definida, o que, mesmo em se tratando de título jornalístico, impõe o uso do artigo: "Após flagrar traição da mulher, taxista morre em troca de tiros com rival"; "Taxista flagra traição da mulher e morre em troca de tiros com rival".

    Então por que não foi empregado o artigo? Certamente porque entrou em cena o bendito piloto automático ("Se é título, nada de artigo"). É sempre melhor refletir do que agir como papagaio. Reações e comportamentos automáticos integram a lista de desgraças do planeta.

    O artigo pode mudar (e muito) o sentido de um título. Imagine estas manchetes: "Fulano diz que não irá a festa do PX"; "Fulano diz que não irá à festa do PX". Qual das duas formas você publicaria, caro leitor?

    Bem, digo logo que a resposta é "depende". E depende do quê? Do que já se disse ou já se sabe da tal festa. Se for uma festa já conhecida, citada aqui e ali, o título será "Fulano diz que não irá à festa do PX".

    Se for uma festa da qual pouco ou nada se sabe, que não foi citada etc., o título será "...não irá a festa do PX". Fica fácil perceber isso com a troca do verbo "ir" (usado com a preposição "a" no caso) por um que reja outra preposição, como "estar", "participar" etc.: "...diz que não estará em/na festa do PX"; "...diz que não participará de/da festa do PX".

    Com a primeira construção de cada par ("em festa"/"de festa"), trata-se a tal festa como algo não especificado, ainda não comentado ou citado, pouco ou nada conhecido etc. Com as outras duas construções ("na festa", "da festa"), ocorre exatamente o contrário.

    Outro caso interessante é o da alternância entre o artigo definido e o indefinido. Na antológica letra de "Último Desejo", de Noel Rosa, há este trecho: "Às pessoas que eu detesto diga sempre que eu não presto, que meu lar é um/o botequim".

    Com qual das duas você fica, caro leitor? Depende. Com a opção por "meu lar é o botequim", não há dúvida: o cidadão não sai do boteco.

    Se a opção for por "meu lar é um botequim", há duas hipóteses: a) meu lar é qualquer botequim, ou seja, basta ser botequim para que eu lá esteja; b) meu lar lembra um botequim, parece um botequim, tem a "organização" de um botequim.

    Na década de 30, a lendária Aracy de Almeida (fiel intérprete de Noel) gravou "um botequim", mas muita gente boa diz "o botequim". Se alguém tiver o manuscrito de Noel, apresente-o, por favor. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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