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    Pasquale Cipro Neto

    Quem é o cabra que vai pôr Cunha no féretro?

    21/07/2016 02h00

    Pedro Ladeira - 19.mai.2016/Folhapress
    BRASILIA, DF, 19-05-2016 - Depoimento do deputado Eduardo Cunha no Conselho de ética da câmara. Pedro Ladeira/Folhapress
    Depoimento de Eduardo Cunha no conselho de Ética da Câmara

    Na quinta-feira da semana passada, na sessão matinal da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, ao referir-se ao tortuoso e interminável caminho da provável (será?) cassação de Eduardo Cunha, o deputado Chico Alencar fez este pronunciamento: "Chega desse velório político prolongado! Vamos partir pro féretro!".

    Permita-me fazer uma perguntinha, caro leitor: ao pé da letra, o que é "velório"? É o "ato de velar", não? E "velar", como se sabe, significa "vigiar", "guardar", "proteger".

    Em algumas regiões do Brasil, como comprovam os nossos dicionários, usa-se a palavra "sentinela" para designar o velório em si ou a pessoa que participa do velório.

    Abro um parêntese para lembrar a memorável "Sentinela" (melodia de Milton Nascimento; letra de Fernando Brant): "Morte, vela, sentinela sou do corpo desse meu irmão...". No disco homônimo (de 1980), a gravação de Milton Nascimento, com a inesquecível participação de Nana Caymmi e com o comovente canto gregoriano de um coro de beneditinos, é daquelas maravilhas que se ouvem de joelhos.

    Mas voltemos ao "velório político prolongado" de Eduardo Cunha. Parece pertinente citar uma das definições que o "Houaiss" dá a "velório": "Evento coletivo no qual pessoas permanecem velando o defunto exposto, durante as horas que precedem o seu enterro ou cremação".

    Eduardo Cunha é mesmo um "defunto" ou é melhor chamá-lo de "morto -vivo", "assombração"?

    Cá entre nós, eu diria que Eduardo Cunha não é nada disso. Cunha é o sentinela; o defunto é a nação.

    Talvez não tenha sido por acaso que (ato falho?) Chico Alencar, que sugere o fim do "velório político prolongado", disse "Vamos partir pro féretro". Decerto ele quis dizer "enterro", "sepultamento", mas, como o velório é de um defunto ainda inexistente, confundiu-se (?) e disse "féretro" em vez de "sepultamento".

    O "féretro", caro leitor, é o caixão, o esquife, a urna mortuária, o ataúde, e não o sepultamento, o enterro.

    É, nobre deputado, parece que, sem querer, Vossa Excelência chegou ao xis da questão: quem é o cabra que vai pôr Cunha no féretro para que aí sim se faça, de preferência sem velório, o sepultamento ou a cremação de mais um dos tantos fantasmas da nossa vida pública?

    Toda essa história da "agonia" de Eduardo Cunha e de tudo o que ele significa torna impossível não pensar no antológico poema "Consoada", de Manuel Bandeira: "Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável), / talvez eu tenha medo. /Talvez sorria, ou diga: / Alô, iniludível! / O meu dia foi bom, pode a noite descer. / (A noite com os seus sortilégios.) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar".

    Para quem não captou a mensagem do poema informo que "a Indesejada das gentes" é a morte. Informo também que "consoada" é "refeição ligeira, noturna, sem carne, em dia de jejum" ou "ceia familiar, na noite de Natal ou de Ano-Novo". "Caroável" é "gentil", "afável".

    O poema de Bandeira parece feito sob medida para o caso da "morte" de Cunha, que, no caso, seria o próprio eu lírico do texto. Sabedor de que, no fundo, no fundo, o campo foi lavrado, a casa está "limpa" e a mesa está posta, com cada coisa em seu lugar, Cunha partirá tranquilo. E o circo Brasil continuará. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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