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    Pasquale Cipro Neto

    O nosso raciocínio é incuravelmente absolutista

    28/07/2016 02h00

    René Magritte/Reprodução
    Montagem com as obras do pintor surrealista belga René Magritte "La Trahison des Images" e "Ceci Continue de ne pas Être une Pipe"
    As obras "La Trahison des Images" e "Ceci Continue de ne pas Être une Pipe" do pintor René Magritte

    Pensar dói, caro leitor. E dói muito. Deixar para lá a relativização na hora de pensar e/ou de interpretar parece uma tentação; é muito mais fácil partir para o raciocínio absolutista. E isso ocorre tanto nas coisas do dia a dia quanto na hora de ler um texto, de produzir um texto a partir da compreensão de outro etc.

    Há muitos anos, a Fuvest pediu aos candidatos que escrevessem uma redação cujo tema dizia respeito a essa questão da relativização. Perguntava-se aos candidatos algo como "É possível afirmar que tudo é relativo?". A pergunta era feita depois da apresentação aos alunos de um quadro do pintor belga René Magritte, no qual se viam a representação gráfica de um cachimbo e uma frase equivalente a "Isto continua a não ser um cachimbo".

    Também se viam dois fragmentos literários; um de Fernando Pessoa ("O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia..."); outro de Machado de Assis ("...mas juro-te que muito menor que a primeira"). Pessoa dizia que o Tejo é mais belo que o rio da sua aldeia, mas não é mais belo que esse rio, e não é mais belo porque não corre nessa aldeia; Machado dizia que no lugar da casa que foi derrubada foi construída outra, três vezes maior, porém menor. A Fuvest pediu aos candidatos que levassem em conta os textos e o quadro para responderem à questão sobre a relativização.

    Se nessa época (já se vão mais de 20 anos) para muita gente já era difícil relativizar, o que se dirá disso hoje, com o vendaval de mediocridades que entopem as redes antissociais e com a interpretação absolutista que muita gente dá a tudo que "lê" e "vê" (mas não enxerga...).

    O resultado disso é catastrófico. A interpretação não leva em conta o texto e o contexto, e as decisões que se tomam... Cruz-credo!

    Depois que completei 60 anos (há mais de um ano), passei a entrar na fila das prioridades legais na hora de embarcar num avião. Pois já perdi a conta de quantas vezes fui "expulso" da fila por funcionários absolutistas, que julgam pela aparência (dizem eles que não aparento a idade que tenho). Não me perguntam que idade tenho; simplesmente me mandam sair da fila, "que é exclusiva das prioridades legais".

    Dia desses, depois de me dizer que eu deveria sair da fila (e de repetir a ladainha das prioridades legais), uma funcionária perguntou: "Qual é o número do seu assento?". E eu, que adoro colocar em crise essas pessoas, fingi-me de morto e respondi: "17". E ela, indicando com a mão: "Então a sua fila é aquela".

    Em todas essas situações, deixei o/a funcionário/a terminar e perguntei, como quem não queria nada: "O/A senhor/a perguntou a minha idade? Perguntou se tenho cartão de cliente fiel, o que me daria direito de ocupar a segunda fila de prioridades (as comerciais)?". Cara de espanto e começo de balbucio. E eu: "O/A senhor/senhora sabe o que direta ou indiretamente acabou de me dizer? Não seria melhor agir de outra maneira, em vez de afirmar, direta ou indiretamente, que estou no lugar errado, que não sei ler as placas informativas ou, pior, que sou um pilantra e tento obter alguma vantagem?".

    A resposta é sempre defensiva: "Eu não quis dizer nada disso". Mas foi o que disse, sim. Assim muita gente age a vida inteira. Isso ocorre também na atividade intelectual, na hora de ler uma mensagem, um texto etc. Triste, muito triste. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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