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    Pasquale Cipro Neto

    Ainda sobre o incurável absolutismo do nosso raciocínio

    04/08/2016 02h00

    Apu Gomes/Folhapress

    Na semana passada, trocamos dois dedos de prosa sobre "o incurável absolutismo do nosso raciocínio". Quero seguir mais um pouco no assunto. Há outros exemplos (bons, creio) para ilustrar a questão.

    Começo por um caso futebolístico, que vem a calhar já que pode ser ilustrado pelo regulamento do torneio feminino de futebol dos Jogos Olímpicos. Disputam-no 12 países, divididos em três grupos de quatro equipes, que na primeira fase se enfrentam dentro do grupo, isto é, os integrantes do grupo X enfrentam os outros integrantes desse grupo.

    Passam para a segunda fase os dois primeiros colocados de cada grupo e também os dois "melhores" terceiros colocados dos três grupos. Como assim? Quer dizer que, se o terceiro colocado do grupo X faz cinco pontos e o terceiro do grupo Y faz quatro pontos, o terceiro do grupo X é melhor do que o terceiro do grupo Y? Não, um milhão de vezes não.

    A campanha de um time de um grupo não é nem melhor nem pior do que a de um time de outro grupo, por uma razão muito, muito simples: esses times enfrentam adversários diferentes, portanto (nesse caso) considerar cinco "melhor" do que quatro é ser absolutista, é transformar em absoluto o que é relativo.

    Para ir direto ao ponto (e mandar às favas o politicamente correto): o regulamento é burro, caro leitor. E é bom que se diga que, nos regulamentos de torneios de futebol, essa burrice é mais do que frequente.

    Vamos a mais um caso. Há algum tempo, na TV, foi exibida uma matéria sobre a presença de turistas de um país sul-americano no litoral de Santa Catarina. Lá pelas tantas, o jornalista disse que, embora fossem necessárias 11 unidades da moeda desse país para comprar um real, os visitantes não reclamavam dos preços cobrados no nosso país.

    E tome absolutismo! Quer dizer que no Japão sou rei com os meus reais, certo? Lá, troco um realzinho por 31,25 ienes, pela cotação de ontem. É isso mesmo, caro leitor! Entrego um superpoderoso real e recebo 31,25 ienes. Sou rico no Japão! Rico não; multimilionário!!!

    Se eu tiver de escolher entre o Japão e o Reino Unido para uma viagem turística, é óbvio que vou ficar com o Japão. No Reino Unido viro um pé-rapado. Lá, entrego um realzinho e recebo míseros 23 centavos (ou "pênis", plural de "pêni" nesse caso...) de libra esterlina, ou, se preferir, entrego R$ 4,32 e recebo uma libra.

    Não é nada disso. Espero que o caro leitor tenha captado a ironia presente no que acabei de afirmar. O valor nominal (absoluto) de uma moeda estrangeira não significa rigorosamente nada. O que importa é saber o que se faz em cada país com uma unidade da moeda local.

    O que importa é saber o valor relativo e não o absoluto: faço no Japão com o equivalente em ienes a X reais mais do que faço no Reino Unido com o equivalente em libras a essa mesma quantia? Ou faço menos?

    Por fim, lembro a conversa sobre o preço do álcool e o da gasolina, que volta e meia vem à tona nos meios de comunicação. Você decerto já ouviu falar daquela famosa continha dos 70%, não? Puro absolutismo. O rendimento dos carros não é uniforme, assim como não é uniforme o rendimento de um mesmo carro com cada um dos combustíveis. São muitas as variáveis (tipo de trajeto, duração, extensão etc.). A coisa não é absoluta, caro leitor; é relativa, bem relativa. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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