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Wednesday, 08-May-2024 11:10:59 -03Pasquale Cipro Neto
Ainda sobre o incurável absolutismo do nosso raciocínio
04/08/2016 02h00
Na semana passada, trocamos dois dedos de prosa sobre "o incurável absolutismo do nosso raciocínio". Quero seguir mais um pouco no assunto. Há outros exemplos (bons, creio) para ilustrar a questão.
Começo por um caso futebolístico, que vem a calhar já que pode ser ilustrado pelo regulamento do torneio feminino de futebol dos Jogos Olímpicos. Disputam-no 12 países, divididos em três grupos de quatro equipes, que na primeira fase se enfrentam dentro do grupo, isto é, os integrantes do grupo X enfrentam os outros integrantes desse grupo.
Passam para a segunda fase os dois primeiros colocados de cada grupo e também os dois "melhores" terceiros colocados dos três grupos. Como assim? Quer dizer que, se o terceiro colocado do grupo X faz cinco pontos e o terceiro do grupo Y faz quatro pontos, o terceiro do grupo X é melhor do que o terceiro do grupo Y? Não, um milhão de vezes não.
A campanha de um time de um grupo não é nem melhor nem pior do que a de um time de outro grupo, por uma razão muito, muito simples: esses times enfrentam adversários diferentes, portanto (nesse caso) considerar cinco "melhor" do que quatro é ser absolutista, é transformar em absoluto o que é relativo.
Para ir direto ao ponto (e mandar às favas o politicamente correto): o regulamento é burro, caro leitor. E é bom que se diga que, nos regulamentos de torneios de futebol, essa burrice é mais do que frequente.
Vamos a mais um caso. Há algum tempo, na TV, foi exibida uma matéria sobre a presença de turistas de um país sul-americano no litoral de Santa Catarina. Lá pelas tantas, o jornalista disse que, embora fossem necessárias 11 unidades da moeda desse país para comprar um real, os visitantes não reclamavam dos preços cobrados no nosso país.
E tome absolutismo! Quer dizer que no Japão sou rei com os meus reais, certo? Lá, troco um realzinho por 31,25 ienes, pela cotação de ontem. É isso mesmo, caro leitor! Entrego um superpoderoso real e recebo 31,25 ienes. Sou rico no Japão! Rico não; multimilionário!!!
Se eu tiver de escolher entre o Japão e o Reino Unido para uma viagem turística, é óbvio que vou ficar com o Japão. No Reino Unido viro um pé-rapado. Lá, entrego um realzinho e recebo míseros 23 centavos (ou "pênis", plural de "pêni" nesse caso...) de libra esterlina, ou, se preferir, entrego R$ 4,32 e recebo uma libra.
Não é nada disso. Espero que o caro leitor tenha captado a ironia presente no que acabei de afirmar. O valor nominal (absoluto) de uma moeda estrangeira não significa rigorosamente nada. O que importa é saber o que se faz em cada país com uma unidade da moeda local.
O que importa é saber o valor relativo e não o absoluto: faço no Japão com o equivalente em ienes a X reais mais do que faço no Reino Unido com o equivalente em libras a essa mesma quantia? Ou faço menos?
Por fim, lembro a conversa sobre o preço do álcool e o da gasolina, que volta e meia vem à tona nos meios de comunicação. Você decerto já ouviu falar daquela famosa continha dos 70%, não? Puro absolutismo. O rendimento dos carros não é uniforme, assim como não é uniforme o rendimento de um mesmo carro com cada um dos combustíveis. São muitas as variáveis (tipo de trajeto, duração, extensão etc.). A coisa não é absoluta, caro leitor; é relativa, bem relativa. É isso.
Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
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