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    Pasquale Cipro Neto

    Superga (Torino) e Medellín

    01/12/2016 02h00

    Quem me acompanha desde sempre (estou neste espaço há 19 anos e cinco semanas) sabe que um dos meus temas favoritos é a necessidade de entender e sentir as imagens linguísticas, as metáforas, as entrelinhas, a poesia, a abstração, o imaginário, sem os quais a vida se torna uma grande e inútil bobagem.

    Pois bem. Movido pela emoção (que ainda toma conta de mim), peço licença aos leitores para dizer duas palavras sobre a tragédia com o voo da Chapecoense. Vou tentar, pois. O meu amado pai, italiano, engenheiro, chegou ao Brasil no fim de 1952. Veio para fazer um trabalho, talvez dois, e depois voltar à Itália. Acabou ficando de vez. Na minha infância, ouvi-o sabe Deus quantas vezes falar da tragédia de Superga (em 04/05/1949).

    Procedente de Lisboa, o pequeno avião que transportava a delegação do Toro (como é chamado na Itália o Torino) bateu na torre da igreja de Superga, fração da cidade de Torino, capital do Piemonte. Todos morreram.

    O Torino era a base da seleção da Itália que disputaria o mundial de 50, no Brasil. O meu pai sabia de cor a escalação da equipe e a repetia sempre que me (re)contava a história, recheada de detalhes sobre o velório e o enterro dos jogadores.

    Essas imagens povoaram (e ainda povoam) o meu imaginário. Na primeira vez que estive em Torino, fiz questão de visitar o local da tragédia –por mim e pelo meu pai, que já tinha partido. Não lhe digo, caro leitor, o que senti nesse momento.

    Depois disso, vi na RAI (tevê italiana) as impressionantes imagens do velório e do funeral dos atletas.

    Jogadores de futebol povoam o imaginário de muita gente...O caro leitor tem ideia do que significa a passagem do imaginário para o quase concreto e dos sentimentos que isso traz? O que dói mais?

    Pois é assim que imagino o que vivem agora os parentes e amigos dos membros da delegação da Chapecoense e dos queridos colegas que estavam no trágico voo. Quando o (ainda) imaginário se concretizar, ou seja, quando todos estiverem de volta, Deus meu! Pobre gente!

    A onda de solidariedade que brotou mundo afora pode ensinar a muitos de nós uma preciosa lição: no esporte (e não só no esporte), a razão de ser de uma agremiação são os seus adversários, sem os quais os times simplesmente não existiriam. Que seria do Corinthians sem o Palmeiras, do Flamengo sem o Fluminense, do Galo sem a Raposa, do Grêmio sem o Inter, e por aí vai?

    Fico pensando como se sentem hoje os miseráveis corintianos que, dias atrás, no Itaquerão, no jogo contra o Internacional, entoaram o mais que imbecil refrão "Vocês vão cair igual ao Fernandão". O ótimo jogador Fernandão, ídolo do Inter, morreu num acidente com um helicóptero em Goiás, em junho de 2014.

    O grande Nélson Rodrigues dizia que "O povo é débil mental; o povo vaia até minuto de silêncio". No episódio da Chapecoense, tirante meia dúzia de imbecis, o povo (daqui e do mundo) tem tirado a razão de Nélson.

    Concreta, a imagem da bruta e brutal fatalidade aplaca até os mais brutos, os mais brutais. Não é por acaso que o homem muitas vezes prefere as metáforas e/ou os eufemismos para falar da brutalidade, da crueldade, da fatalidade.

    Do fundo da alma, divido com os envolvidos na tragédia as muitas lágrimas, concretas e metafóricas, que derramo desde anteontem. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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