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    Patrícia Campos Mello

    O ato de matar

    28/02/2014 15h44

    Imagine um torturador confesso do DOI-Codi fazendo uma reconstituição dos assassinatos que cometeu. Diante das câmeras, ele não parece arrependido -ao contrário, está bem orgulhoso.

    Não contente, esse torturador, um fã de cinema, faz as reconstituições no estilo de seus filmes favoritos: western, noir e musical. Com direito a maquiagem, figurino e todo o resto, o torturador e seus comparsas mostram exatamente como matavam "comunistas".

    Transfira o cenário para a Indonésia e você tem o documentário "O Ato de Matar", de Joshua Oppenheimer, o favorito para o Oscar na categoria.

    O filme é como uma faca que vai sendo enterrada no estômago do espectador ao longo de agoniantes 115 minutos.

    Em 1965, depois do assassinato de seis generais, os militares assumiram o poder na Indonésia, em um processo que levaria em última instância à saída de Sukarno. Sukarno, fundador do Movimento dos Não alinhados durante a Guerra Fria, era próximo ao Partido Comunista da Indonésia, que defendia uma ampla reforma agrária no país, antagonizando proprietários de terras, militares e clérigos islâmicos. Logo após o assassinato dos seis militares, um general sobrevivente, Suharto, foi aos poucos assumindo o poder no país (que veio a presidir por 31 anos).

    E Suharto coordena expurgos que levaram à morte de quase 1 milhão de "comunistas" no país (na prática, qualquer um que se opusesse ao regime era rotulado de comunista).

    Os militares recrutaram civis para os esquadrões da morte que levaram a cabo a maior parte de quase 1 milhão de assassinatos.

    Oppenheimer foca no líder de um desses esquadrões da morte - Anwar Congo que calcula ter matado centenas de "comunistas" - para reconstituir os crimes. E ele parece estar se divertindo a valer enquanto mostra como usava um arame para assassinar as vítimas - método que copiou de seus filmes favoritos ("não junta muito sangue", ele explica). Congo e outros assassinos protagonizam as reconstituições temáticas (caubói, detetive, musical) dos crimes.

    Fundador da organização paramilitar Pemuda Pancasila, Congo é um ídolo no país. Muitos políticos importantes e ate ministros do governo fazem parte da organização. Os líderes não foram responsabilizados pelos assassinatos em massa.

    Entre os produtores executivos do filme estão Werner Herzog e Errol Morris, diretor do genial "The Fog of War: Eleven Lessons from the Life of Robert S. McNamara".

    "O Ato de Matar" já levou o Bafta de melhor documentário.

    Deve levar o Oscar, se a Academia tiver estômago para premiar um filme tão pouco palatável.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

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