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    Patrícia Campos Mello

    Recuo do Brasil na África preocupa, diz Carlos Lopes, da ONU

    01/05/2015 10h00

    O recuo do Brasil em sua política de aproximação com a África é preocupante, diz Carlos Lopes, secretário executivo da Comissão Econômica da ONU para a África (Uneca). Segundo ele, o país vem perdendo espaço no continente africano para outros competidores e o desinvestimento de grandes empresas como a Vale e a Petrobras vão acentuar o problema.

    Lopes foi representante da ONU no Brasil de 2003 a 2005 e esteve em São Paulo na semana passada para participar de uma conferência. Estive com ele durante uma hora e publico aqui a entrevista em que Lopes fala sobre o perdão da dívida dos países afetados pelo ebola, crescimento econômico na África e problema dos imigrantes para Europa.

    *

    O senhor defende o perdão da dívida dos países afetados pela epidemia do ebola, Guiné, Serra Leoa e Libéria?

    Nós chegamos à conclusão que o perdão da dívida é a melhor forma relançar a economia dos três países. A dívida total deles é de US$ 3 bilhões, a maior parte é da Guiné. As promessas que tinham sido feitas por vários países para ajudar no combate ao ebola ultrapassavam os US$ 4 bilhões, mas só US$ 2 bilhões se concretizaram. O ebola praticamente desapareceu, mas os países continuam com o peso econômico. Os países ricos acham que já fizeram sua parte, e que já perdoaram dívida de países africanos muitas vezes. Mas visto o tamanho do problema.....
    Estou convencido de que vamos chegar ao perdão da dívida, vai demorar mais de um ano, mas está bem encaminhado, o FMI respondeu favoravelmente. O efeito macroeconômico será extraordinário. Vamos fazer um alinhamento entre o serviço da dívida e a recomposição do setor de saúde. Ou seja, o país não paga mais o serviço da dívida, na condição de que o dinheiro que seria usado para isso seja usado na reconstituição do sistema de saúde.

    Qual o tamanho do estrago que o ebola deixou nesses países?

    Nossa projeção é de uma perda de US$ 3 bilhões, mas talvez não chegue a isso. O impacto só se deu a partir de metade do ano passado. Como esses países estavam a crescer muito (Serra Leoa 13%, Libéria 8% e Guiné 3,5%) nós prevemos que nenhum deles tenha entrado em recessão, devem fechar 2014 com crescimento entre 0 e 1%.

    Mesmo se forem US$ 3 bilhões, qual é o impacto disso em países cujo PIB combinado é US$ 6 bilhões?

    É bastante grande. O estoque de arroz nesses países era de cerca de 6 meses e agora está a zero. É preciso capitalizar o país para que ele faça estoque. Os sistemas de saúde foram totalmente desviados para responder ao ebola, então todos os ganhos que haviam sido feitos em vacinação e prevenção ficaram comprometidos. É preciso recuperar quase um ano de desgaste, com menos pessoal de saúde, porque esse pessoal morreu em grande parte. E o sistema escolar foi duramente afetado, durante um ano quase todo mundo não teve aulas e o regresso é complicado, porque há um medo de tudo quanto é concentração, por causa do ebola. Só duas companhias aéreas mantiveram os voos. A British Airways continua fora, a Air France também. E é ainda pior em transporte marítimo. Mas é importante ressaltar que os efeitos da epidemia não contaminaram o resto da África. Os três países juntos representam 0,68% do PIB da África. É muito pouco. Correspondem a três semanas da economia da Nigéria. A África é sempre vítima dessa amálgama, dessa simplificação. Como no caso dos conflitos: há 100 milhões de africanos afetados por conflitos, é muito. Mas há 900 milhões de africanos que não são afetados por conflitos. Não se fala que a África é a região que mais cresce economicamente, tem maior velocidade de retorno de investimento, a relação dívida-PIB na África é de menos de 30%.

    E a desigualdade, está caindo?

    Não. O coeficiente de Gini não está melhorando. Os 3 mil africanos mais ricos detêm US$ 400 bilhões, segundo estimativa da Comissão. E o conjunto das reservas dos bancos centrais da África é de US$ 500 bilhões. A pobreza está se reduzindo de forma muito lenta, o atual crescimento da África não tem qualidade, não produz transformação econômica. O consumo interno é 2/3 do crescimento, não gera necessariamente empregos. Além disso, há o fator commodities. A África se beneficiou do superciclo das commodities. E o terceiro fator é boom dos serviços - que é positivo, mas é informal, não são empregos, são ocupações precárias, como a do cara que vende cartão sim de celular, cabeleireira. Eles não pagam impostos. O impacto do fim do superciclo de commodities e os outros problemas levarão a uma perda de 1 ponto porcentual no crescimento do PIB da África neste ano. Em vez de 5,8%, o PIB avançará 4,8%.

    O Brasil vem recuando em sua atuação na África...

    É muito preocupante o recuo do Brasil em relação aos ganhos e investimentos que tinha o feito na África. Fico preocupado com o desinvestimento das grandes companhias brasileiras na África, como a Vale e a Petrobras. Como são empresas âncora da relação com a África, elas influenciam o resto do mercado. Deveria haver preocupação do governo brasileiro com a concorrência. Um país como a Turquia, que começou atrás do Brasil em 2003 em investimentos na África, agora já ultrapassou o Brasil em tudo. Em 2003, quando começou a política do presidente Lula para a África, a Turkish Airlines fazia quatro voos diretos para a África e as companhias aéreas brasileiras faziam zero. Hoje em dia, as companhias brasileiras continuam com zero e a Turkish faz 44 voos diretos.

    Como o sr. vê a ascensão do fundamentalismo islâmico na África?

    Nós na África tínhamos conflitos provocados por três fatores principais - má gestão de diversidade, ou seja, não respeitar as minorias e não as integrar; causas econômicas, como os "blood diamonds", e o terceiro fator era a dificuldade de conversão à modernidade, como o problema dos pastoralistas.
    Todos os conflitos islâmicos radicais têm participação de pastoralistas - tuaregues, somalis, norte da Nigéria com o Boko Haram. Os hausas são tradicionalmente pastoralistas.
    Agora, houve um aumento na complexidade dos conflitos por causa da proliferação de toda espécie de traficantes: traficantes de pessoas, de armas, de drogas. Então as causas socioeconômicas se misturaram ao crime organizado. É relativamente fácil, no caso da África, detectar quando ocorre a mudança, quando tudo isso se junta como átomos - causas religiosas, crime organizado, traficantes, socioeconômico - é com a queda do (Muammar) Gaddafi na Líbia. A queda de Gaddafi gerou uma proliferação de armas. Há uma zona franca para tráfico das armas e agora chegou às portas da Europa com os imigrantes..

    A intervenção ocidental na Líbia foi a causa disso tudo?

    A intervenção não foi pensada em suas consequências finais, foi uma tentativa de mudança de regime sem pensar no contexto local, que era extremamente complexo: um país com uma quantidade enorme de armas, com redes de infiltração em todo o Saara, e uma muitas tropas do Gaddafi que não eram líbias, eram mercenários estrangeiros. Isso criou uma multidão de desempregados superarmados.

    Isso está no cerne do Boko Haram e das levas de imigrantes?

    Não foi a explosão da Líbia que criou esses movimentos, mas a explosão da Líbia juntou vários fatores: tráfico, criminalidade organizada e religião, que se uniram com potência máxima pelo que aconteceu na Líbia.

    A iniciativa anunciada pela UE de aumentar os recursos para operações de resgate de imigrantes no Mediterrâneo é acertada?

    A preocupação humanitária é legítima, precisamos primeiro salvar vidas, mas está tudo sendo levado sem diálogo com africanos, nomeadamente a União Africana. Porque não adianta ir bombardear barcos...

    O que deveria ser feito?

    Todos os países vizinhos precisam ser parte de uma discussão para estudar os canais dessa imigração.

    Mas isso exigiria a cooperação com países que atualmente não têm governo, como a Líbia...

    O grupo de países que estão nas bordas da Líbia se reuniram e fizeram um apelo 3 meses atrás, pedindo uma intervenção militar na Líbia, e ninguém lhes ouviu. Três meses depois, não se fala nos países de onde vem o tráfico.

    Mas acho que não querem nem pensar em uma intervenção militar na Líbia...

    Os países que estão a gerar os imigrantes, como Somália e eritreia, precisam de grande apoio de desenvolvimento. Mas é necessária uma intervenção na Líbia. Há uma força de intervenção da União Africana na Somália, eles conseguiram conquistar praticamente 80% do território do Al Shabab. Quem ajuda essa força, dá dinheiro? A União Europeia....ou seja, a UE sabe que pode fazer coisas para estancar. Essas forças não têm meios suficientes, se tivessem quatro ou cinco helicópteros a mais, já faria grande diferença.

    Mas aumentar o contingente militar nesses países não é um tabu?

    Não, não é tabu na Somália porque é uma força africana em um país africano, portanto, não é uma intervenção estrangeira. Mesma coisa com Boko Haram, está sendo derrotado com Chade, Camarões. Nós queremos apoio. Essas forças africanas têm uma enorme legitimidade, africanos resolvendo o problema africano.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

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