• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 22:51:48 -03
    Patrícia Campos Mello

    A Síria vista da Síria

    02/10/2015 02h17

    "Bashar al-Assad é a causa, e o Estado Islâmico é o resultado."

    Foi assim que um jornalista sírio resumiu a situação enquanto caminhávamos pelas ruínas de Kobani, cidade que foi sitiada pelo Estado Islâmico por quatro meses e reduzida a escombros.

    Enquanto os Estados Unidos e a Rússia reeditam a Guerra Fria em território sírio, uns armando a oposição a Assad e outros bombardeando essa mesma oposição, a vista aqui de Kobani é turva.

    No final, com Assad ou com o EI, são os sírios que se ferram, é a conclusão.

    As crianças da cidade já sabem o roteiro e reencenam: "quando a gente ouve aquele barulho que parece um assobio, a gente deita no chão, assim, porque está vindo a bomba", demonstram.

    Ninguém duvida de que o Estado Islâmico possa voltar a qualquer momento e massacrar de novo a população, ou que Bashar al-Assad possa esmagar a recém-conquistada autonomia curda se for fortalecido pela intervenção russa.

    Mesmo assim, os sírios não hesitam nem por um segundo em sua frenética missão de reconstrução de Kobani e de outras cidades afetadas pela guerra.

    E se voltarem a bombardear?

    Paciência, é a resposta.

    "As pessoas têm esse sonho de que na Europa as coisas vão ser fáceis, que não vão ter que trabalhar duro... Mas eles se esquecem de que os europeus passaram pela mesma coisa que estamos vivendo agora. Eles tiveram a Segunda Guerra Mundial, milhares de refugiados, aí reconstruíram seus países e agora estão bem... Nós temos que fazer o mesmo aqui: consertar tudo o que foi destruído. A guerra vai acabar em algum momento, e nós vamos ficar bem", disse me uma advogada síria.

    Passei quatro dias com uma família síria, na casa semidestruída onde moram. Dormimos em colchões ao ar livre para fugir do calor, na residência que não tem nem um móvel sequer –todos foram queimados pelo EI, para que a fumaça atrapalhasse os ataques aéreos americanos.

    Esta família e outras que encontrei por lá se negam a vestir o papel de vítimas, embora tenham todo o direito.

    Os sírios são valentes.

    E surpreendentes.

    A última coisa que esperamos de um povo que aguenta uma guerra há cinco anos, com 250 mil mortos, é a generosidade.

    Pois foi justamente isso que eu encontrei na Síria, seja na pensão que recebe de graça jornalistas e trabalhadores humanitários, seja na farmácia que se recusa a cobrar pelos remédios.

    E, por todo lado, a extrema generosidade de ver o copo meio cheio, até nos momentos em que a vista é turva.

    "Estou feliz porque pude voltar para a minha terra, mesmo que tenha de reconstruir minha casa", dizia-me a síria Saliha Juma, 45, que voltou de um campo de refugiados na Turquia e hoje vive com a família de 11 pessoas em um contêiner e uma barraca doados por ONGs.

    Sua filha de 20 anos e seu filho, de 21, estão na milícia curda (YPG) lutando contra o Estado Islâmico.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024