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    Patrícia Campos Mello

    O médico que merecia ter ganho o Nobel da Paz

    16/10/2015 02h30

    O Quarteto de Diálogo Nacional da Tunísia levou o Nobel da Paz deste ano por mostrar que há, sim, final feliz para países que passaram pela Primavera Árabe –embora seja raro e dependa de concertos políticos como o engendrado na Tunísia.

    Sem tirar o mérito dos tunisianos, acho que o prêmio deveria ter ido para um país africano mais ao sul –a República Democrática do Congo (RDC).

    Mas, pelo terceiro ano seguido, o médico congolês Denis Mukwege, 60, um dos mais cotados para o prêmio, foi esnobado pelo comitê do Nobel.

    Mukwege é o maior especialista do mundo em cirurgias para reparar danos internos em vítimas de estupro coletivo. Desde 1998, o hospital que ele fundou na República Democrática do Congo, chamado Panzi, tratou mais de 30 mil mulheres estupradas nas guerras do país.

    Frederick Florin - 26.nov.2014/AFP
    Denis Mukwege na cerimônia do Prêmio Sakharov do Parlamento Europeu, em Estrasburgo (França)
    Denis Mukwege na cerimônia do Prêmio Sakharov do Parlamento Europeu, em Estrasburgo (França)

    O estupro é usado como arma de guerra na República Democrática do Congo desde o início da primeira guerra no país, em 1996.

    Embora seja difícil apurar números precisos, a ONU estima que 200 mil mulheres tenham sido estupradas nos conflitos. Muitas são atacadas de forma tão violenta que sofrem dano permanente nos órgãos internos. Meninas a partir de cinco anos e idosas de 80 anos foram mutiladas, muitas vezes na frente de suas famílias.

    O hospital Panzi, fundado com ajuda de uma ONG sueca, fica na cidade de Bukavu e acolhe mulheres de todo o país, que muitas vezes viajam centenas de quilômetros para cirurgias de reconstituição da vagina e aconselhamento psicológico.

    Mukwege desenvolveu uma técnica menos invasiva para tratar a fístula vaginal –um rompimento entre a vagina e o ânus ou entre a vagina e a bexiga por causa de estupros violentos ou partos muito difíceis. Como consequência da fístula, a mulher não consegue segurar a urina ou as fezes e pode ter vários tipos de infecções.

    O congolês também implementou um programa de treinamento para enfermeiras e médicos tratarem as vítimas de estupro. O programa inclui desde cirurgias de reconstrução até tratamento para sífilis e HIV, que muitas mulheres contraem nos estupros.

    Mukwege mora e trabalha no hospital, e faz cirurgias duas vezes por semana.

    Em outubro de 2012, homens armados invadiram sua casa no Congo e mantiveram suas filhas reféns enquanto esperavam que ele retornasse. Quando o médico chegou, um segurança tentou intervir, acabou morto, e Mukwege escapou se jogando no chão. Depois disso, o médico se mudou para a Europa com a família.

    Mas voltou a Bukavu em 2013 e foi recebido calorosamente pela comunidade. Seus pacientes haviam arrecadado fundos vendendo abacaxis e cebolas para pagar sua passagem.

    Mukwege nasceu em 1955, o terceiro de nove filhos. Ele estudou medicina na RDC antes de se especializar em ginecologia na Europa, após ver muitas mulheres morrerem em seu país por causa de complicações do parto.

    O médico já recebeu inúmeros prêmios por seu trabalho –entre eles, o Prêmio de Direitos Humanos da ONU, em 2008, e o Prêmio Sakharov do Parlamento Europeu, em 2014. Em 2015, ele recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Harvard.

    Falando sobre o estupro como arma de guerra, Mukwege afirmou ao diário britânico "The Guardian": "É um método de tortura. Uma maneira de aterrorizar a população. Quando vejo alguns dos ferimentos nas mulheres e crianças, chego à conclusão que esse tipo de violência tem pouco a ver com sexo: é uma forma de exercer poder através de terrorismo".

    Segundo ele, o mais difícil é quando ele ajuda uma mulher a dar à luz uma menina, resultado de estupro, e anos depois precisa "tratar essa mesma menina, que também foi estuprada."

    "Essa será a destruição do povo congolês. Se destruírem úteros suficientes, não haverá crianças. Então por que vocês não vêm direto e pegam os minerais logo?"

    A RDC é rica em coltan, um mineral usado na fabricação de celulares e outros aparelhos eletrônicos, que está no cerne de vários conflitos no país.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

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