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    Patrícia Campos Mello

    O dilema de Obama na Síria

    15/04/2016 02h00

    Reportagem de capa da revista "The Atlantic" deste mês reacendeu a discussão sobre o legado do presidente Barack Obama em política externa. Para muitos, Obama vai entrar para a história como um grande líder que deixou sua marca no cenário global. A reaproximação com Cuba e o acordo nuclear com o Irã seriam os maiores trunfos de Obama.

    Mas alguns analistas não hesitam em criticar o presidente americano por sua atuação —ou não atuação— no conflito na Síria, que já matou quase 500 mil pessoas desde 2011.

    A reportagem de Jeffrey Goldberg mostra como Obama resolveu não intervir militarmente na Síria, em 2013, mesmo após fortes indícios de que o ditador Bashar al-Assad havia usado armas químicas contra civis em Ghouta.

    Volta a ser discutida a teoria de que o governo Obama preferia que os EUA "lead from behind" (liderassem sem assumir a dianteira, em tradução livre), deixando que outros países tomassem a dianteira em intervenções, como ocorreu na Líbia.

    Obama se elegeu prometendo extricar os EUA de duas guerras, no Iraque e no Afeganistão. Ele brincava que, após a desastrada invasão do Iraque por George W. Bush, seu mantra era "don't do stupid shit" (não faça merda, em tradução livre).

    Após o uso de gás sarin em Ghouta, Obama ficou sob pressão intensa não apenas de republicanos e neocons, mas também da ala intervencionista de seu governo, capitaneada por Samantha Power, hoje embaixadora dos EUA na ONU, e Susan Rice, atualmente conselheira de Segurança Nacional.

    Power escreveu o livro "Genocídio" em que condena a omissão dos EUA durante o genocídio em Ruanda e defende o princípio de "responsabilidade de proteger", segundo o qual a soberania dos países pode ser violada quando eles estão massacrando seus cidadãos.

    Um ano antes, Obama havia advertido Assad, com palavras duras, de que o uso de armas químicas seria "uma linha vermelha" que desencadearia mudança de ação.

    E mesmo assim, não fez nada.

    Para muitos, isso minou a creedibilidade de Obama e a reputação dos EUA.

    Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations, principal centro de pesquisas de política externa dos EUA, compara a decisão de Obama de não intervir militarmente na Síria com o erro de Bush ao invadir o Iraque em 2003.

    "A guerra do Iraque foi um erro de Bush que custou um preço extraordinariamente alto", disse Haass em entrevista à Folha. Ele esteve no Brasil por dois dias, e se reuniu com a diretoria do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), empresários e acadêmicos.

    "Já o erro de Obama na Síria foi de omissão, uma omissão que abalou seriamente a reputação dos EUA e a confiança dos nossos aliados na região."

    Haass acredita que, tivessem os EUA atacado Assad na época com um bombardeio intenso de vários dias, isso teria abalado o regime e teria passado um recado forte de que o uso de armas químicas não seria tolerado.

    "Além disso, nossos aliados tradicionais na região sentiram que não poderiam mais contar com o apoio dos EUA e passaram a se armar mais e armar grupos "proxy", o que teria colaborado com a escalada de violência na Síria.

    Na reportagem, Obama argumenta que, na época, não havia 100% de certeza de que Assad havia usado armas químicas (entra o fantasma do Iraque e as supostas armas químicas de Saddam Hussein).

    A chanceler alemã Angela Merkel afirmou que não iria apoiar nem participar, e o parlamento britanico bloqueou David Cameron. E, por fim, Obama resolveu enfrentar o establishment de política externa dos EUA, que clamavam por uma solução militar.

    É difícil prever se uma intervenção naquela época teria feito diferença. Para muitos, ao não intervir, Obama deixou que a guerra civil síria se tornasse um conflito insolúvel e também possibilitou o surgimento de grupos extremistas como Estado Islâmico e a Frente al-Nusra.

    Mas o fato é que, agora, é perigosa a estratégia de armar a oposição - uma vez que é muito difícil diferenciar grupos de oposição diferenciar a Assad dos extremistas islâmicos.

    *Os colegas Diogo Schelp, editor executivo da Veja, e André Liohn, fotógrafo que já registrou guerras e desastres humanitários ao redor do mundo para publicações como a Der Spiegel e a Time, lançaram nesta semana o livro "Correspondente de Guerra - os perigos da profissão que se tornou alvo de terroristas e exércitos", pela editora Contexto. Trata-se de um registro histórico importante, com grande trabalho de pesquisa de Diogo e depoimentos de vários correspondentes brasileiros, e conta com as fotos espetaculares de André na Líbia e Haiti.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

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