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    Patrícia Campos Mello

    Para a Human Rights Watch, a Europa é refém de Erdogan e precisa buscar alternativas para lidar com a crise de refugiados

    10/06/2016 02h00

    Kenneth Roth, diretor executivo da ONG de direitos humanos Human Rights Watch (HRW), esteve no Brasil nesta semana e conversou com a Folha sobre Venezuela, impeachment no Brasil, liberdade de imprensa na Turquia, refugiados na Europa. Abaixo, trechos da entrevista:

    O acordo entre a União Europeia e a Turquia para estancar o fluxo de refugiados resolve a situação?

    Um milhão de pessoas cruzaram o mar mediterrâneo em direção à Europa em 2015. É muita gente, mas representa apenas 0,2% da população europeia. Ou seja, o problema dos refugiados na Europa é político, e não de capacidade. As cenas de caos nas praias de Lesbos fizeram a Europa parecer que havia perdido o controle sobre suas fronteiras, o que, por sua vez, ajudou na ascensão da extrema direita. Havia uma percepção por parte de Angela Merkel, chanceler alemã, e outros de que algo precisava ser feito para que se recuperasse o controle. Parte do acordo com a Turquia é positiva: oferecer até US$ 6 bilhões ao governo turco para permitir que refugiados reconstruam suas vidas na Turquia, voluntariamente. Muitos dos 2,7 milhões de refugiados sírios na Turquia não conseguem, educar seus filhos, conseguir bons empregos, moradia ou assistência médica. Entre 300 e 500 mil crianças sírias na Turquia estão fora da escola - às vezes precisam trabalhar, as vezes é complicado matriculá-las...Então a UE deveria, sim, investir na Turquia, Jordânia e Líbano para ajudar esses refugiados. Mas há uma parte negativa no acordo: o plano de mandar os refugiados de volta para a Turquia parte da premissa de que a Turquia é um terceiro país seguro. A lei internacional de refúgio determina que, se você passar por algum país seguro antes de chegar a um outro país para se refugiar, você pode ser mandado de volta para esse primeiro país. Mas a Turquia não é segura para os refugiados - na realidade, o país ratificou a convenção do refúgio de forma muito restrita, de modo que, na Turquia, ela só se aplica a europeus. Então até os refugiados sírios estão lá de maneira apenas arbitrária, não têm direitos garantidos, não se trata de um país seguro para esses refugiados construírem suas vidas.
    É necessário ter uma abordagem diferente, nós estamos conversando com líderes europeus para que haja uma triagem de refugiados na Turquia, Líbano e Jordânia. Assim, seria possível filtrar os imigrantes econômicos e aqueles que representam ameaças à segurança, e chegar àqueles que realmente têm direito a refúgio. A Alemanha considera continuar recebendo algumas centenas de milhares de refugiados por ano e os holandeses falaram em 250 mil...comando as várias ofertas, acho que a Europa pode continuar recebendo 500 mil por ano. Mas outros países, como o Brasil, também precisam assumir responsabilidades. O Canadá recebeu 25 mil refugiados sírios, e os canadenses reclamaram que não era suficiente. Aumentaram o número de acolhidos para 40 mil. Ah, se houvesse mais 'Canadás' no mundo. Já os Estados Unidos têm sido deploráveis, eles prometeram acolher 10 mil sírios e até agora receberam pouco mais de 2 mil, alguns Estados se recusam a acolhê-los.

    Você acha que a Europa "se vendeu" a Recep Tayyip Erdogan, o presidente da Turquia? Ou seja, está fechando os olhos para o autoritarismo de Erdogan, porque ele ameaçou deixar todos os refugiados irem para a Europa?
    No curto prazo, a Europa é refém de Erdogan. E ele está se aproveitando disso para silenciar a oposição, minar a democracia turca, encarcerar jornalistas, ameaçar legisladores e reviver a guerra contra os curdos. Normalmente, a UE criticaria tudo isso de forma muito franca. Mas os europeus têm se omitido, por medo de que Erdogan retalie e deixe os barcos chegarem. Mas Merkel está procurando alternativas.

    Como o senhor vê a atual situação no Brasil?
    Em relação à política externa, vejo uma oportunidade para o Brasil ter uma abordagem mais equilibrada e menos ideológica na região. Mas não tenho certeza de que isso vai se concretizar, porque este governo é bastante sensível em relação a suas origens. Não está claro se vai agir contra a demagogia que está vindo de Caracas. É um momento desastroso para a Venezuela, esperamos que o Brasil se junte à Argentina e outros e aja como uma força em prol da democracia. Maduro está levando o país para a beira do precipício e esperamos que o Brasil tenha um papel mais construtivo no processo, e não se intimide pela retórica vinda de Caracas.

    Houve uma mudança na retórica usada pelo Itamaraty com a Venezuela e outros dos países da aliança bolivariana. Mas o Brasil ainda não se posicionou de forma clara em relação à crise venezuelana. Que tipo de medidas vocês esperam do Brasil?
    Mesmo no governo anterior, houve, pela primeira vez, um esforço para se aproximar da oposição. E acho que era um reconhecimento, por parte do PT, de que os interesses de longo prazo do Brasil estão com a população venezuelana e não com um governante específico. E um governante que, nesta altura, parece estar apostando em uma estratégia suicida para seu país. Nesse contexto, há necessidade de liderança regional, precisamos ter freios e contrapesos no sistema venezuelano, a oposição precisa ser capaz de falar livremente sem risco de ser encarcerada, precisamos de imprensa e judiciário livres. Espero que, na medida em que o Brasil emergir desse momento tumultuado, o novo governo reconheça a necessidade de ter uma abordagem mais construtiva para a Venezuela.

    Há uma percepção de que a iniciativa de Luis Almagro, secretário geral da OEA, de invocar a carta democrática contra a Venezuela, foi contraproducente
    Acho que Almagro queria ressaltar que a democracia venezuelana foi solapada e quis pressionar os governos mais poderosos da América Latina a intervir

    De que maneira o Brasil deveria intervir?
    O Brasil precisa pressionar para que os direitos da Assembleia Nacional venezuelana sejam garantidos, para que a independência do judiciário seja reestabelecida, os presos políticos sejam libertados e as vozes da oposição possam ser ouvidas na imprensa e nas ruas. Maduro adora falar sobre a interferência estrangeira nos assuntos domésticos, mas, justamente, os direitos humanos se guiam por certos standards que não podem ser ignorados, e Maduro praticamente "espancou" esses princípios de direitos humanos. Este é precisamente o momento em que atenção internacional não é apenas apropriada, mas é necessária. Maduro está claramente "enrolando" para que o referendo revocatório não seja realizado antes do final do ano (se o referendo só for realizado no ano que vem e o 'sim' ganhar, assume o vice, em vez de se realizarem novas eleições). E o referendo é um processo constitucional, as pessoas têm direito a votar no referendo no 'timing' apropriado.

    Como o senhor vê a crise política que afeta o Brasil?
    Em primeiro lugar, está em curso uma investigação contra corrupção que impressiona por sua independência e capacidade de se manter, apesar da turbulência política. Claramente as tentativas de travar a investigação não vêm funcionando. O Brasil deveria ficar orgulhoso. Mas estamos preocupados com algumas leis que estão em discussão. Temos feito um esforço enorme para que crianças não sejam tratadas como adultos no sistema criminal justamente porque elas não possuem o discernimento de adultos e podem ser recuperadas. O estatuto da família também nos preocupa, ele é contrário a tudo o que vem ocorrendo no mundo. As pessoas reconhecem cada vez mais que as famílias podem ter várias configurações. Quem é o Estado para dizer que família só pode ser pai e mãe?

    O senhor acha que o governo brasileiro atual é legítimo?
    Há um processo constitucional sendo supervisionado e acompanhado por um sistema judiciário independente; pode-se questionar as razões de algumas das pessoas que incentivaram o impeachment porque queriam apenas deter a operação Lava Jato, mas há supervisão do STF e não vemos razões para fazermos objeções.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

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