• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 19:54:32 -03
    Patrícia Campos Mello

    Maré está virando, afirma economista transgênero sobre aceitação social

    10/11/2017 02h00 - Atualizado às 10h18
    Erramos: esse conteúdo foi alterado

    Tive o privilégio de entrevistar a economista americana Deirdre McCloskey, 75, na quarta-feira de manhã. Um dos primeiros assuntos que Deirdre levantou foi a eleição de de Danica Roem para a Assembleia Legislativa do Estado americano da Virgínia.

    Danica derrotou um candidato que se chamava de "o maior homofóbico da Virginia" e apresentou leis proibindo pessoas transgênero de usarem o banheiro relativo ao gênero com que se identificam.

    Jorge Araujo/Folhapress
    A economista americana Deirdre McCloskey, da Escola de Chicago, em entrevista à *Folha*
    A economista americana Deirdre McCloskey, da Escola de Chicago, em entrevista à Folha

    Deirdre disse que estava emocionada. "Foi uma vitória contra o populismo alimentado pelo ódio", disse. "Isso nunca teria acontecido na minha época."

    Os Pecados Secretos da Economia
    Deirdre Mccloskey
    l
    Comprar

    Respeitada economista libertária que se doutorou pela Universidade Harvard e deu aula por 12 anos na Universidade de Chicago, Deirdre mudou de gênero em 1995. Chamava-se Donald, era casado há 30 anos e tinha 2 filhos.

    Autora de 16 livros e mais de 300 artigos acadêmicos, é reconhecida por suas posições pró-mercado, bastante identificadas com a Escola de Chicago, mas também por seu ativismo na defesa de pessoas transgênero.

    Ela deu uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento, nesta quarta-feira (8), e lançou o livro "Os pecados secretos da economia", pela Ubu Editora. Abaixo a íntegra da entrevista:

    *

    Como a senhora vê a política econômica do presidente Donald Trump —ao mesmo tempo em que ele quer eliminar regulamentações, algo que os livre-mercadistas defendem, ele vem impondo medidas protecionistas...

    Deirdre McCloskey - É um desastre. Ele é um populista, como [o líder russo, Vladimir] Putin, [o mandatário turco, Recep Tayyip] Erdogan e [o primeiro-ministro húngaro, Viktor] Orban.

    Ele herdou desemprego baixo e crescimento de seu antecessor, Barack Obama. Não fez nada de bom até agora, o mercado continua subindo porque se pauta pelo futuro, pelas expectativas, e tem a esperança de que Trump vai eliminar muitas regulamentações que prejudicam as empresas.

    Mas, de fato, ele vem eliminando regulamentações da era Obama que eram consideradas excessivas, não?

    Ele tem se focado nas regulamentações ambientais e beneficiado a indústria do carvão. Eu não acho isso inteligente. Deveríamos ter um imposto sobre emissões. O bom é que os EUA têm um longo histórico de democracia, que não se restringe à presidência.

    Na Virgínia, por exemplo, onde uma mulher transgênero acaba de se eleger. Isso é maravilhoso, fiquei emocionada. Foi uma vitória contra o populismo alimentado pelo ódio. Ele [o oponente] ficava dizendo não votem porque ela é trans, e as pessoas não estavam nem aí, votaram porque ela propôs consertar a Rota 28 [estrada na região].

    Seria possível eleger uma mulher transgênero em 1995, ano em que a senhora mudou de gênero?

    Isso nunca teria acontecido na minha época. Na verdade, houve uma mulher transgênero eleita nos anos 90, mas ninguém sabia que ela era trans. (Althea Garrison se elegeu em 1992 para a Assembleia de Massachusetts, mas não revelou que era transgênero; um repórter de um jornal conservador a 'tirou do armário' em uma reportagem no mesmo ano).

    Mas a maré está virando. Os americanos estão evoluindo muito nas questões sociais. Casamento gay era inconcebível 20 anos atrás. Obviamente, há as pessoas Taleban, os EUA são como um croissant, várias camadas diferentes. Algumas pessoas vivem na Oklahoma dos anos 50, outras vivem em Massachusetts de 2030.

    Paul J. Richards - 26.jul.2017/AFP
    Manifestantes protestam contra proibição de transgêneros nas Forças Armadas americanas em julho
    Manifestantes protestam contra proibição de transgêneros nas Forças Armadas americanas em julho

    A senhora diz que a maré está virando, mas Trump reduziu proteções para pessoas transgênero (em agosto, anunciou que iria retomar a proibição de pessoas abertamente transgênero servirem nas Forças Armadas)...

    Trump é um oportunista, não está nem aí se alguém é transgênero, só quer agradar sua base de malucos no Oklahoma. E os militares desconversaram —disseram sim, presidente, vamos trabalhar nisso, e não têm nenhuma pressa.

    Mas a Suprema Corte vai examinar uma ação que pode permitir a pessoas negarem serviços por motivos religiosos, como um dono de estabelecimento que se recusou a fazer um bolo para um casamento gay......

    Em relação à decisão da Suprema Corte, não vejo nenhum problema. Se o confeiteiro se recusar a fazer o bolo do casamento gay, o cliente simplesmente vai no confeiteiro do lado.

    É o livre mercado, várias empresas oferecem o serviço. Agora, se o Estado nega proteção a você aí é um problema, porque trata-se de um monopólio, só o Estado pode fazer isso, não há opções.

    A senhora enfrentou preconceito por ser transgênero?

    Não tenho como saber isso. Se uma pessoa chega para você e diz —e aí, seu "viado", é fácil dizer que é preconceito. Mas se eu não consigo um cargo na Universidade Stanford porque uma pessoa se opôs, e essa pessoa tinha preconceito, apesar de não dizer, é impossível saber.

    É o problema enfrentado pelas mulheres, o telhado de vidro, é de vidro porque não conseguimos ver esse preconceito. Se um homem belisca seu traseiro, está claro que foi um degradante para a mulher.

    Mas se for mais sutil, não dá para saber. Quando mudei de gênero, achei que ia perder um emprego e arruinar minha carreira. Isso não aconteceu. Mas não pensei que ia perder minha família para sempre.

    A senhora nunca mais falou com eles?

    Eu falei, mas eles não responderam. Tenho três netos que nunca vi. Já chorei muito por causa disso. Gostaria que minha mulher tivesse escolhido o caminho do amor e continuássemos casados.

    A senhora gostaria de continuar casada com ela?

    Sim, Joanne é o amor da minha vida. Fui casada por 30 anos com ela e ainda a amo. A propósito, a transição não está relacionada a sexo. Eu não tive nenhuma relação sexual desde que mudei de gênero. Zero.

    Sou assexuada, nesse sentido a operação [de mudança de sexo] não foi inteiramente bem sucedida. Mas isso não é um problema. Homens pensam sobre sexo a cada dez segundos. Mulheres pensam em amor. Eu penso em amor, afeição, conexão.

    A senhora voltou a falar com sua irmã, que tentou interná-la em clínicas psiquiátricas quatro vezes por sua decisão de mudar de gênero?

    Sim. Levou alguns anos, mas hoje nós conversamos. Ela é bipolar e está em tratamento. Ela achava que estava me salvando, pensava que eu tinha ficado louca.

    Como a senhora acha que a desigualdade de renda deve ser combatida?

    O que deve ser feito é garantir renda mínima, algo que eu e você vamos pagar através de nossos impostos. O que não deve ser feito é estabelecer (e valorizar) o salário mínimo, que basicamente nos exime de responsabilidade e força os empregadores a pagar mais.

    Isso só aumenta o desemprego entre as pessoas mais pobres, mais jovens e menos qualificadas. Qualquer tipo de proteção ao emprego, inclusive para pessoas transgênero, é um desastre.

    Não tenho objeção a garantir uma renda mínima. Sou cristã, acho que eu e você temos obrigação de ajudar os mais pobres. Embora, obviamente, isso possa levar algumas pessoas a escolher uma vida de ócio.

    De qualquer jeito, é impraticável financeiramente assegurar renda para todo mundo, a não ser que você corte todos os subsídios e proteções que o Estado dá.

    A desigualdade é o maior problema da atualidade?

    Má distribuição de renda não é importante. Fiz uma resenha de 50 páginas do livro do Piketty (O capital no século XXI, de Thomas Piketty ). É um livro sério de um homem sério, mas ele está equivocado e a ciência está errada. Por exemplo, ele ignora o capital humano. A maior parte da renda vem do capital humano, capital físico não é tudo.

    Mas é fato que se tornou consenso dizer que a desigualdade é o maior mal do mundo...

    Isso é uma besteira completa. O maior mal do mundo são a pobreza e a tirania, que estão interligados. Sociedades livres crescem e prosperam. Sociedades tirânicas não, com poucas exceções, como Cingapura. Pessoas vivendo com US$ 2 por dia, esse é o maior problema, não a concentração de renda.

    As pessoas recebem o quanto outras pessoas acham que elas valem. Se você é uma estrela do basquete, um artista famoso, você vai ganhar muito. Pode ser um menino negro, pobre, que saiu do Bronx e se tornou um jogador de futebol bem sucedido, ganhando US$ 6 milhões por ano. Não vejo problema nisso.

    Desde que eles recebam o que outras pessoas acham que eles valem, esse é o incentivo certo para atrair pessoas para a medicina, o empreendedorismo...

    Mas existe uma percepção de que as pessoas deveriam compartilhar sua riqueza...

    Claro, e é por isso que eu não gosto da Liliane Bettencourt (bilionária francesa, herdeira da L'Oreal). Ela criou um fundo filantrópico com apenas metade de 1% da sua riqueza. Isso é um fundo de relações públicas, é filantropia do Trump. Andrew Carnegie, por exemplo, doou toda sua riqueza. Ele podia ter deixado seus parentes na Escócia milionários até a sexta geração, mas preferiu fazer filantropia.

    A senhora se define uma libertária crista e, como tal, o que acha de proteções do estado para minorias como as pessoas transgênero?

    Acho que igualdade de direitos é o objetivo correto, mas intervir em negociação salarial para garantir igualdade é um erro. E sou contra cotas e proteções para minorias, acho que isso cria o tipo de reação que levou ao Trump.

    Minha ideia de universidade é a de Chicago, onde eu lecionei por 12 anos. Lá, você entra se for inteligente. Não existe esse sistema péssimo de Harvard e Yale, onde o que conta é ter ex-alunos na família, ser atleta ou ter um pai que vai construir um prédio para a universidade.

    patrícia campos mello

    Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024