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    Paula Cesarino Costa - Ombudsman

    Jornalistas e juízes não devem escapar da balança

    09/10/2016 02h00

    Editoria de Arte/Folhapress

    Um desembargador de São Paulo colocou a imprensa sob suspeita de ser financiada pelo crime organizado. Sua acusação foi publicada na quarta (5) de modo correto e sóbrio. "Diante da cobertura tendenciosa da imprensa sobre o caso Carandiru, fico me perguntando se não há dinheiro do crime organizado financiando parte dela, assim como boa parte das autodenominadas organizações de direitos humanos", escreveu o desembargador Ivan Sartori. O título de seu comentário em rede social é: "Quando a Imprensa é Suspeita".

    Sartori presidiu a sessão do Tribunal de Justiça de São Paulo que anulou o julgamento do massacre do Carandiru. Em primeira instância, 74 policiais militares tinham sido condenados por participação na ação que deixou 111 pessoas mortas. Sartori afirmou que "não houve massacre no Carandiru, mas sim legítima defesa [por parte dos PMs]". Pediu a absolvição dos réus, sem necessidade de novo júri.

    A reação à acusação do desembargador da possibilidade de a imprensa ser financiada pelo crime organizado –disparatada e sem indício mínimo de aproximação com a realidade– praticamente se limitou a uma nota de protesto da Associação Brasileira de Imprensa.

    Jornalistas, jornais e entidades de classe deveriam processar o desembargador? E se um jornalista ou um jornal tivesse colocado a Justiça sob suspeita de ser financiada pelo crime organizado? Como reagiriam magistrados e entidades de classe?

    Um exemplo pode ser buscado no Paraná. Após publicarem reportagem, em fevereiro, sobre supersalários de juízes e promotores do Estado, três repórteres, um infografista e um webdesigner do jornal "Gazeta do Povo" sofreram 41 processos em 19 cidades do Estado por magistrados e promotores que pediam R$ 1,3 milhão de indenização por danos morais. Eles reclamaram de ter sido "ridicularizados".

    Em julho, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber suspendeu todas as ações e audiências do caso até o julgamento do mérito da reclamação feita pelo jornal. O caso aguarda apreciação do STF.

    Conflitos do Judiciário com a imprensa parecem estar em evidência de modo difuso. Em duas manifestações no mês de setembro, o corregedor nacional de Justiça e ministro do STJ, João Otávio Noronha, fez críticas fortes: "Pobre do país que tem sua magistratura refém da mídia", disse. Ele considera que a imprensa condenou os envolvidos em casos como o mensalão e a Lava Jato e pressiona os julgadores. Propôs que "manchetes de jornal que aniquilam histórias de vida" sejam punidas com indenizações rigorosas.

    A crítica rigorosa da mídia é fundamental, necessária e saudável. Jornais e revistas já condenaram pessoas em suas capas, dando-se um poder de Justiça que não têm. É direito de qualquer cidadão questionar aquilo que é publicado.

    Questões referentes à liberdade de imprensa, à reação de quem se sente atingido por coberturas noticiosas e à responsabilidade de jornais e jornalistas têm uma lição histórica a ser examinada.

    Em 1964, movimentos em defesa dos direitos civis nos Estados Unidos publicaram um manifesto no jornal "The New York Times" para arrecadar fundos para ajudar líderes como Martin Luther King. Descrevia "uma onda sem precedentes de terror" das ações policiais contra manifestantes pacíficos em Montgomery, Alabama. A história comprovou que houve agressão policial, mas o manifesto dos líderes dos direitos civis continha detalhes exagerados ou informações erradas.

    L. B. Sullivan, da polícia em Montgomery, processou o jornal por difamação. O anúncio não mencionava o nome de Sullivan, mas ele justificou que o manifesto o difamava porque as ações da polícia no episódio estavam sob sua responsabilidade. Na instância local, ganhou a ação, e o "New York Times" foi condenado a pagar US$ 500 mil.

    O jornal recorreu à Suprema Corte sob o argumento de não ter a intenção de atingir a reputação do policial. Acrescentou que, se um jornal fosse obrigado a verificar a exatidão de todas as críticas a um servidor, a imprensa livre ficaria limitada.

    A mais alta corte dos EUA decidiu em favor do "NYT". A fim de provar difamação, um funcionário público deve mostrar que o jornal agiu "com malícia", definida como "real conhecimento de que a informação era falsa ou por negligência grosseira da verdade". Na avaliação da Suprema Corte, o debate livre e aberto sobre a conduta de funcionários públicos é mais importante que ocasionais erros factuais honestos que possam causar danos eventuais à reputação de servidores.

    No caso do Brasil, resta saber quantos juízes estão dispostos a estimular e quantos pretendem restringir o debate robusto e aberto das questões públicas, em especial quando têm de enfrentar questões corporativas.

    paula cesarino costa

    Está na Folha desde 1987. Foi Secretária de Redação e editora de Política, Negócios e Especiais. Chefiou a Sucursal do Rio até janeiro de 2016. Escreve aos domingos.

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