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    Paula Cesarino Costa - Ombudsman

    Retrato morno de tema quente

    04/12/2016 04h45

    O sinal de alerta havia sido dado durante a tarde da quarta-feira (30). Com o país chocado com a queda do avião na Colômbia, que provocou a morte de 71 pessoas, entre elas jogadores da Chapecoense e jornalistas, o Congresso poderia trabalhar nas sombras para aprovar medidas, para dizer o mínimo, impopulares e polêmicas.

    O alvo era o pacote anticorrupção, projeto de lei apresentado com o significativo apoio de 2 milhões de eleitores. Com seus méritos e defeitos, foi dizimado na Câmara dos Deputados na madrugada em que o país se declarava de luto.

    Na edição de quinta-feira (1º), a Folha escondeu a crise na sua primeira página em uma chamada discreta, priorizando a tentativa posterior do presidente do Senado de votar tramitação de urgência para o texto aprovado na Câmara. O destaque principal, claramente relevante, foi este: "Recessão prolongada no país eleva pessimismo sobre 2017", ao noticiar o recuo de 0,8% do PIB (Produto Interno Bruto).

    Acertadamente, os jornais "O Globo" ("Câmara provoca forte reação ao desfigurar pacote anticorrupção") e "O Estado de S. Paulo" ("Força-tarefa ameaça abandonar Lava Jato; aumenta tensão entre Poderes") publicaram manchetes fortes e cobertura ampla, sem que escondessem os números fracos do PIB.

    O jornal carioca chegou a ocupar três páginas com infográfico com a posição dos deputados em relação a cada um dos pontos em votação –iniciativa reclamada por leitores da Folha à ombudsman.

    O jornal tratou as mudanças com fleuma, enquanto os leitores se indignavam. Houve panelaço por diversas capitais do país na noite seguinte e iniciou-se a convocação de novos protestos públicos.

    Leitor reclamou de que o jornal se alienou na cobertura do que chegou a ser chamado de "madrugada da infâmia". Apontou que não vira refletida em suas páginas a "crise institucional de alta octanagem" pela qual passa o país.

    É preciso recuperar a ordem dos fatos, contextualizá-los e expor as dificuldades técnicas da cobertura. Por volta das 22h de 29 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do pacote de medidas contra a corrupção, alinhavado pelo Ministério Público Federal.

    Desde a apresentação, o projeto fora objeto de grande discussão. As pressões causaram idas e vindas na comissão especial que o analisou.

    Reportagem publicada à 0h13 no site da Folha já indicava que a aprovação, quase unânime, poderia não significar nada. "Foram 450 votos a favor e apenas um contra. Apesar do placar, há pendentes ainda de votação na madrugada desta quarta (30) emendas que podem alterar completamente o texto."

    A votação das emendas se encerrou às 4h19 da madrugada de quarta-feira. O projeto fora desfigurado. Apenas uma das dez propostas havia sido mantida na íntegra. Essa história foi precariamente contada na versão impressa do jornal.

    Na visão do secretário de Redação, Vinicius Mota, a escolha editorial se justificou, "num dia em que tivemos a confirmação de que a pior recessão da história moderna do país vai se arrastar mais do que o inicialmente esperado, e talvez por mais um longo ano".

    Para ele, "caso houvesse prevalecido, a manobra ensaiada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, de aprovar de forma expressa o texto recém-chegado da Câmara mereceria sem dúvida uma manchete. Ela foi, entretanto, derrotada, e por sólida maioria, o que repôs o assunto num regime mais alongado de debate e tramitação".

    Nas páginas internas, a edição de "Poder" dedicou bom espaço, mas falhou na reconstituição da votação da madrugada, não trouxe bastidores sobre como atuaram as várias forças políticas nem apresentou interpretações sobre o ocorrido, além de não oferecer o serviço de como votaram os deputados.

    O jornal publicou artigos de opinião, quando deveria ter priorizado a análise especializada.

    Para o editor de "Poder", Fábio Zanini, não fazia sentido dar grande espaço na edição impressa de quinta para algo ocorrido na madrugada de quarta, mais de 24 horas antes de o exemplar impresso chegar ao leitor. "Mostrar no impresso como cada deputado se posicionou tomaria muito espaço, mas concordo que poderia ter sido feito no digital. Uma análise teria sido o ideal, mas dois artigos de opinião, um a favor e outro contra, têm efeito parecido", avaliou.

    O editor enxerga complementaridade entre digital e impresso, algo com que nem todo leitor concordaria, além do risco de a fragmentação impedir a visão do processo e das consequências como um todo.

    O resultado foi que a Folha ofereceu retrato morno e incompleto de tema quente.

    paula cesarino costa

    Está na Folha desde 1987. Foi Secretária de Redação e editora de Política, Negócios e Especiais. Chefiou a Sucursal do Rio até janeiro de 2016. Escreve aos domingos.

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