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    Paula Cesarino Costa - Ombudsman

    Muito além dos muros

    24/09/2017 06h37

    Avener Prado/Folhapress
    Muro separa ricos e pobres em Lima, no Peru.
    Muro separa ricos e pobres em Lima, no Peru; fotografia integra o especial 'Mundo de Muros'

    A Folha cresceu tendo como concorrente "O Estado de S. Paulo". Por moldagem ou antinomia, um jornal marcou o outro. O "Estado" tem raízes tradicionais; a Folha assumiu o papel de jornal moderno.

    Nesta semana, uma peça jornalística de grande qualidade lembrou que a concorrência não se resume mais ao jornal do outro lado da marginal ou ao da metrópole vizinha.

    Em reportagem de três páginas, que ocupou um quarto da primeira página de sua versão impressa de domingo, 17, o jornal americano "The New York Times" mostrou por que é referência mundial.

    Sob o título "Como a grande indústria viciou o Brasil em junk food", construiu uma grande reportagem a partir de documentos de empresas, estudos epidemiológicos e relatórios governamentais.

    Desde a abertura, é um exemplo de excelência:

    "FORTALEZA, Brasil - Gritos de crianças soavam na manhã quente e úmida, enquanto uma mulher empurrava um carrinho branco e reluzente pelas ruas esburacadas e repletas de lixo espalhado. Ela fazia entregas em algumas das casas mais pobres desta cidade litorânea, levando sobremesas lácteas, biscoitos e outros alimentos industrializados aos clientes em seu trajeto.

    Celene da Silva, 29, é uma de milhares de revendedoras porta a porta da Nestlé que ajudam o maior conglomerado de alimentos industrializados do mundo a expandir seu alcance para 250 mil casas nos recantos mais longínquos do país.

    Enquanto entregava várias embalagens da sobremesa láctea Chandelle, de Kit-Kats e do cereal infantil Mucilon, algo chamava a atenção sobre seus clientes: muitos estavam visivelmente acima do peso, incluindo as crianças pequenas."

    Em geral, o leitor brasileiro se acostumou a ver seu país refletido em jornais estrangeiros com informações que já circularam na imprensa local. Esse tempo passou.

    A reportagem impecável enfoca ângulo não abordado pela imprensa nacional. Mostra como a indústria contribui para epidemia de obesidade. Explicita meandros do poder brasileiro, como a escolha de um advogado das indústrias para ocupar agência que deveria fiscalizá-la.

    De olho no mercado nacional, o jornal americano disponibilizou, em seu site, uma versão em português da reportagem que faz parte de série sobre a epidemia de obesidade.

    Sugeri na critica interna de segunda (18) que a Folha a reproduzisse em suas páginas, já que tem contrato que permite reproduzir textos do jornal. Só foi publicada no dia 21, em sua versão digital, e no 22, na impressa. Não tentou repercuti-la nem buscou enfoque próprio.

    O mercado brasileiro tem sido cobiçado por empresas jornalísticas de porte mundial. O espanhol "El País" apostou em uma alentada versão brasileira no mundo digital. A BBC Brasil ampliou seu serviço em língua portuguesa. Ambos são constantemente citados por leitores.

    Nas mensagens à ombudsman, indicam reportagens desses grupos de mídia, com temas e enfoques diferentes daqueles escolhidos por veículos brasileiros, para comparar àquelas produzidas pela Folha.

    A concorrência global é um desafio. A Folha, com certeza, é referência para o trabalho de correspondentes estrangeiros no Brasil. Agora, no entanto, se vê assediada por produtos jornalísticos de peso em seu próprio quintal.

    Não dá para dizer que esteja parada. Desde 2013, a Folha tem feito investimento em grandes reportagens multimídia inspiradas no que o "New York Times" faz.

    A primeira delas, por exemplo, sobre a usina de Belo Monte, recebeu vários prêmios internacionais.

    Neste mês, o jornal encerrou outra série de reportagens ambiciosa, chamada Mundo de Muros. Publicada desde junho, explorou barreiras físicas construídas em quatro continentes, por motivos como miséria, desemprego, terrorismo e guerra, revelando situações pouco conhecidas do público brasileiro.

    A produção da série se estendeu por seis meses e envolveu 22 pessoas. Foram sete viagens, cada uma delas com uma dupla repórter de texto/repórter fotográfico. Segundo Roberto Dias, secretário de Redação da Folha, teve boa audiência e alto engajamento de leitura.

    Não é algo que se veja com frequência nos jornais brasileiros.

    Do ponto de vista dos leitores em geral, a competição internacional parece ser o melhor dos mundos. Um jornalista decano, no entanto, vê na movimentação riscos de consolidação de um oligopólio mundial de notícias, diminuindo espaços da imprensa brasileira.

    Por mais problemas que tenha, a imprensa brasileira está vinculada aos problemas do país e os aborda a partir da perspectiva nacional. Grupos de mídia estrangeiros com preocupações globais trafegam em outro nível de abordagem. Nem sempre melhor, nem sempre pior.

    Novos tempos, sem muros digitais, impõem desafios gigantescos.

    paula cesarino costa

    Está na Folha desde 1987. Foi Secretária de Redação e editora de Política, Negócios e Especiais. Chefiou a Sucursal do Rio até janeiro de 2016. Escreve aos domingos.

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