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    Paul Krugman

    A guerra contra os pobres

    01/11/2013 15h26

    John Kasich, o governador republicano do Ohio, fez algumas coisas surpreendentes, recentemente. Para começar, ele contornou o bloqueio do Legislativo de seu Estado - controlado por seu partido - a fim de levar adiante a expansão, bancada por verbas federais, do programa de saúde Medicaid, uma das peças centrais da reforma da saúde de Obama (Obamacare). Depois, ao defender sua atitude, disparou contra seus aliados políticos ao declarar que "estou preocupado com o fato de que parece existir uma guerra contra os pobres. A ideia de que, se você é pobre, é porque é preguiçoso e indolente".

    Obviamente Kasich não é a primeira pessoa a fazer essa observação. Mas o fato de que ela tenha vindo de um republicano respeitado no partido (ainda que talvez não mais, depois do episódio), e de alguém que na verdade costumava ser definido como um dos líderes da ala conservadora republicana, é revelador. A hostilidade republicana para com os pobres e desafortunados atingiu tamanha intensidade febril que o partido na realidade não defende mais qualquer outra coisa - e apenas os observadores que preferem fechar os olhos deixam de perceber essa realidade.

    A grande questão é entender a causa. Mas, primeiro, vamos falar um pouco mais sobre o que está enfurecendo a direita.

    Ocasionalmente vejo sabichões alegando que o movimento Tea Party é propelido por pessoas que basicamente se preocupam com os deficit orçamentários. É uma interpretação completamente iludida. Leia a diatribe de fundação do movimento, por Rick Santelli da CNBC. Quase não há menção a deficit. Em lugar disso, temos uma tirada contra a possibilidade de que o governo ajude os "perdedores" a evitar a execução de hipotecas sobre suas casas. Ou leia transcrições dos programas de Rush Limbaugh ou de qualquer dos outros apresentadores de rádio direitistas. Eles pouco falam sobre responsabilidade fiscal, mas têm muito a dizer sobre a maneira pela qual o governo está recompensando os preguiçosos e os não merecedores.

    Os republicanos em posições de liderança tentam modular um pouco essa linguagem, mas a questão é mais de tom que de teor. Continuam a acreditar de modo claramente apaixonado que é preciso garantir que os pobres e as vítimas da má sorte recebam o mínimo possível de ajuda - e evitar que, nas palavras de Paul Ryan, o presidente republicano do Comitê de Orçamento da Câmara - a rede de segurança social "se torne uma rede de varanda que induza pessoas capazes a uma vida de dependência e complacência". E as propostas orçamentárias de Ryan envolviam cortes severos em programas que formam essa rede de seguro social, a exemplo da assistência alimentar e do programa de saúde Medicaid.

    Toda essa hostilidade para com os pobres culminou na verdadeiramente espantosa recusa de muitos Estados a participar na expansão do Medicaid. Tenha em mente que o governo federal pagaria pela expansão e que o dinheiro envolvido ajudaria hospitais e a economia local, além dos beneficiários diretos. Mas a maioria dos governos estaduais controlados pelos republicanos ao que parece está disposta a pagar um preço econômico e fiscal mais alto a fim de garantir que os pobres não recebam assistência.

    A realidade é que as coisas nem sempre foram assim. Recue por um momento a 1936, quando Alf Landon foi indicado pelo Partido Republicano para disputar a presidência. De muitas maneiras, o discurso dele na convenção do partido é uma prévia de muitos dos temas que os conservadores modernos viriam a encampar. Ele lastimou que a recuperação econômica não fosse completa e a persistência do alto desemprego, e atribuiu muitas das fraquezas persistentes da economia à intervenção governamental excessiva e à incerteza que, em sua interpretação, isso criava.

    Mas ele também declarou o seguinte: "Dessa Depressão surgiu não só o problema da recuperação mas o problema igualmente grave de cuidarmos dos desempregados até que a recuperação seja obtida. Aliviar sua situação de toda maneira possível é claramente um dever. Nós de nosso partido prometemos que essa obrigação jamais será negligenciada".

    Você consegue imaginar um republicano indicado à presidência hoje em dia fazendo declaração semelhante? Não em um partido que tem compromisso para com a visão de que a vida dos trabalhadores desempregados é fácil demais, que o auxílio-desemprego e a assistência alimentar os protegem tanto que eles não têm incentivo de sair à rua e conseguir emprego.

    Assim, qual é o motivo para isso tudo? Uma das razões, sugeriu o sociólogo Daniel Little em ensaio recente, é a ideologia de mercado. Se o mercado está sempre certo, as pessoas que terminam pobres certamente merecem ser pobres. Eu acrescentaria que alguns dos luminares republicanos estão, ao menos em suas imaginações, personificando fantasias libertárias de adolescência. "É como se estivéssemos vivendo um romance de Ayn Rand, hoje", disse Paul Ryan em 2009.

    Mas também existe, como diz Little, a mancha indelével da questão racial.

    Em um memorando recente que vem sendo muito citado, a Democracy Corps, uma organização de pesquisa de opinião pública simpática ao Partido Democrata, reportou sobre os resultados de grupos de discussão dos quais participaram membros de diversas facções republicanas. Os pesquisadores constataram que a base republicana tinha "muita consciência de ser branca em um pais cada vez mais pertencente às minorias" - e que ela vê a rede de segurança social como algo que tanto ajuda Aquelas Pessoas, e não pessoas como a base republicana, quanto vincula a crescente população não branca ao Partido Democrata. E, sim, a expansão do Medicaid rejeitada por muitos Estados teria de fato ajudado os negros pobres de maneira desproporcional.

    Com isso, temos, sim, uma guerra contra os pobres, que tanto coincide com quanto agrava o sofrimento causado por uma economia em crise. E essa guerra se tornou a questão central que define a política dos Estados Unidos.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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