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    Paul Krugman

    Bits e barbárie

    23/12/2013 17h50

    Essa é uma história de três poços (monetários) sem fundo. Também é uma história de arrependimento monetário –a história da estranha determinação de muitas pessoas de voltar o relógio, revertendo séculos de progresso.

    O primeiro poço sem fundo é literalmente um poço –a mina de ouro a céu aberto Pogera, na Papua Nova Guiné, uma das maiores produtoras mundiais do metal.

    A mina tem uma reputação horrível tanto em termos de respeito aos direitos humanos (estupros, espancamentos e homicídios praticados por seus seguranças) quanto em termos de danos ao ambiente (vastas quantidades de resíduos potencialmente tóxicos são despejados sem tratamento em um rio vizinho).

    Mas os preços do ouro, embora estejam em queda ante seus picos recentes, continuam três vezes mais altos do que eram uma década atrás, e por isso cavar é preciso.

    O segundo poço é muito mais estranho: a mina de bitcoins de Reykjanesbaer, Islândia. O bitcoin é uma moeda digital que tem valor porque... bem, é difícil dizer exatamente por quê, mas por enquanto, ao menos, as pessoas estão dispostas a comprá-la porque acreditam que outras pessoas se disporão a comprá-la.

    O bitcoin foi concebido para ser uma espécie de ouro virtual. E, como o ouro, pode ser garimpado: uma pessoa pode criar novos bitcoins, mas apenas ao resolver problemas matemáticos muito complexos que requerem tanto poder de computação elevado quanto muita energia elétrica para acionar os computadores.

    Isso explica a localização na Islândia, que conta com eletricidade barata por conta de suas usinas hidrelétricas e com muito ar frio para resfriar as máquinas que calculam furiosamente.

    Mesmo assim, muitos recursos reais estão sendo utilizados para criar objetos virtuais sem uso claro.

    O terceiro poço sem fundo é hipotético. Em 1936, o economista John Maynard Keynes argumentou que aumentar os gastos do governo era necessário para restaurar o pleno emprego. Mas então, como hoje, havia forte resistência política a qualquer proposta desse tipo.

    Por isso, Keynes sugeriu uma alternativa brincalhona: que o governo enterrasse garrafas cheias de dinheiro em minas de carvão desativadas, e permitisse que o setor privado empregasse o seu dinheiro para escavar em busca do tesouro enterrado.

    Seria melhor, ele apontou, que o governo construísse estradas, portos e outras coisas úteis –mas até mesmo gastos completamente inúteis serviriam para dar à economia o estímulo de que ela tanto necessitava.

    IDEIA DE OURO

    Era uma ideia esperta –mas Keynes foi além. O economista apontou que, na vida real, a mineração de ouro era algo de muito parecido com a experiência hipotética que ele estava propondo.

    As mineradoras de ouro, afinal, incorriam em grandes despesas e esforços para extrair dinheiro do solo, ainda que fosse possível criar quantidade ilimitada de dinheiro acionando as rotativas da casa da moeda. E tão logo o ouro era escavado, ele não demorava muito a ser enterrado de novo, em lugares como o cofre de ouro do Federal Reserve Bank de Nova York, onde centenas de milhares de barras de ouro estão guardadas, e sem fazer nada de especial.

    Imagino que Keynes se divertiria sardonicamente ao perceber que pouco mudou nas últimas três gerações. Aumentar os gastos públicos para combater o desemprego continua a ser anátema.

    As mineradoras continuam a destruir a paisagem e a ampliar as reservas ociosas de ouro. (Keynes definiu o padrão ouro como "relíquia bárbara").

    OURO VIRTUAL

    O bitcoin só serve para agravar a ironia. O ouro, afinal, tem pelo menos alguns usos reais, por exemplo para obturações dentárias; mas agora estamos consumindo recursos para criar "ouro virtual" que não oferece coisa alguma além de sequências de dígitos.

    Suspeito, no entanto, que Adam Smith ficaria chocado.
    Smith é muitas vezes tratado como santo padroeiro dos conservadores, e ele de fato foi o primeiro proponente dos argumentos em favor do livre mercado. Que ele também tenha defendido vigorosamente a regulamentação bancária, e defendido as virtudes do papel-moeda, é algo muito menos mencionado.

    O dinheiro, no entendimento dele, era uma maneira de facilitar o comércio, e não uma fonte de prosperidade nacional – e o dinheiro em papel, ele argumentou, permitia que o comércio fosse adiante sem amarrar porção grande demais da riqueza de um país ao "estoque morto" da prata e ouro.

    Por que, então, estamos destruindo os altiplanos da Papua Nova Guiné a fim de ampliar nosso estoque morto de ouro, e, ainda mais bizarramente, operando computadores poderosíssimos 24 horas por dia a fim de ampliar o estoque de dígitos mortos?

    Se você falar aos maníacos por ouro, eles lhe dirão que o papel-moeda vem dos governos, e que não se pode confiar em que eles não adulterarão o valor de suas moedas.

    O estranho, porém, apesar de tudo que se ouve sobre a adulteração no valor de moedas, é que exemplos desse tipo de comportamento são cada vez mais difíceis de encontrar. Não é apenas que a inflação nos países avançados continue claramente baixa demais, e não alta demais, apesar dos anos de alertas severos sobre o perigo de uma inflação descontrolada.

    Mesmo de uma perspectiva mundial, os episódios de inflação realmente alta se tornaram raros. Mas a esperança de um surto hiperinflacionário parece ser eterna.

    O bitcoin deriva seus atrativos mais ou menos das mesmas fontes, aparentemente, com a ajuda da sensação de que é um produto algorítmico e de alta tecnologia, e por isso certamente deve estar apontando o caminho do futuro.
    Mas não se deixe enganar pelo invólucro elegante: o que está realmente acontecendo é uma marcha determinada aos dias em que dinheiro significava alguma coisa que você podia tilintar na Bolsa.

    Nos trópicos e na tundra igualmente, de alguma forma estamos cavando o caminho de volta ao século 17.

    P. Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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