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    Paul Krugman

    A febre fiscal está amainando

    30/12/2013 15h58

    Em 2012, o presidente Barack Obama, sempre esperançoso de que a razão venha a prevalecer, previu que sua reeleição serviria para enfim amainar a febre que toma o Partido Republicano. Isso não aconteceu.

    Mas a intransigência da direita não foi o único problema a afligir o organismo político norte-americano em 2012. Também estávamos sofrendo de febre fiscal: a insistência, por virtualmente toda a elite política e mídia, em que os deficit orçamentários eram nosso mais urgente e importante problema econômico, ainda que o governo federal continuasse capaz de realizar captação a juros incrivelmente baixos. Em lugar de falar sobre desemprego em massa e a disparada na desigualdade, Washington mantinha foco quase exclusivo sobre a suposta necessidade de reduzir fortemente os gastos (o que agravaria a crise de emprego) e cortar selvagemente a rede de seguridade social (o que agravaria a desigualdade).

    Por isso, a boa nova é que esta febre, ao contrário da febre do Tea Party, parece enfim ter amainado.

    É verdade que os resmungões quanto ao deficit continuam ativos, e continuam a receber tratamento adulatório de parte de algumas organizações noticiosas. Como apontou recentemente a revista "Columbia Journalism Review", muitos repórteres mantêm o hábito de "tratar o corte do deficit como um objetivo não ideológico, enquanto retratam outros pontos de vista como partidários ou parciais". Mas os resmungões já não são capazes de definir os limites do que constitui "opinião respeitável". Por exemplo, quando os suspeitos usuais recentemente lançaram um ataque contra a senadora Elizabeth Warren devido ao seu apelo por uma expansão da previdência social, o resultado claro da ação foi conferir maior estatura à senadora.

    O que mudou? Eu sugeriria que ao menos quatro coisas aconteceram para desacreditar a ideologia do corte de deficit.

    Primeiro, a premissa política por trás do "centrismo" - a de que os republicanos moderados estariam dispostos a se unir aos democratas em um grande acordo que combinaria aumentos de impostos e cortes de gastos - se tornou insustentável. Não existem republicanos moderados. Os debates que existem entre a ala Tea Party e a ala não Tea Party do partido se relacionam a estratégia política, e não a questões substantivas.

    Segundo, a combinação entre uma alta na arrecadação e corte nos gastos fez com que a captação federal despencasse. Isso na verdade faz mal à economia, porque cortes prematuros de deficit danificam a nossa economia ainda enfraquecida - de fato, é provável que estivéssemos perto do pleno emprego, a esta altura, não fosse a austeridade fiscal sem precedentes adotada nos três últimos anos. Mas a queda do deficit iluminou a tática do medo, que tem papel tão central na causa "centrista". Nem mesmo as projeções de longo prazo sobre o deficit federal parecem mais tão alarmantes.

    Falando em usar o medo para fins táticos, 2013 foi o ano em que os jornalistas e o público enfim se cansaram dos meninos que gritam "é o lobo". Houve um momento em que as audiências ouviam com imensa atenção as previsões de calamidade fiscal - por exemplo quando Erskine Bowles e Alan Simpson, co-presidentes da comissão criada por Obama para estudar o problema da dívida pública, alertaram que uma crise fiscal severa era provável dentro de dois anos. Mas isso aconteceu quase três anos atrás.

    Por fim, ao longo de 2013, os argumentos intelectuais em favor do pânico quanto à dívida desabaram. Normalmente, debates técnicos entre economistas têm relativamente pouco impacto sobre o mundo político, porque os políticos quase sempre conseguem encontrar especialistas - ou, em muitos casos, "especialistas" - dispostos a lhes dizer o que eles desejam ouvir. Mas o que aconteceu no ano que estamos deixando para trás pode ser a exceção.

    Para aqueles que não prestaram atenção ou esqueceram, por diversos anos os resmungões quanto ao deficit, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, dependeram fortemente de um estudo conduzido por dois respeitados economistas, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, segundo o qual a dívida pública tem efeito negativo severo sobre o crescimento quando excede os 90% do Produto Interno Bruto (PIB). Desde o começo, muitos economistas expressaram ceticismo quanto a essa alegação. Parecia imediatamente óbvio, acima de tudo, que era o crescimento lento que causava dívida alta, e não o contrário - como certamente foi o caso, por exemplo, no Japão e na Itália. Mas nos círculos políticos, a marca dos 90% se tornou um verdadeiro evangelho.

    Mas Thomas Herndon, um aluno de pós-graduação na Universidade de Massachusetts, decidiu recalcular os dados usados para o estudo e constatou que o aparente despenhadeiro de crescimento que surgia quando a dívida passava dos 90% do PIB desaparecia com a correção de um pequeno erro e o acréscimo de alguns fatores de cálculo adicionais.

    A verdade é que os resmungões quanto ao deficit não chegaram à sua posição com base em provas estatísticas. Como diz o velho ditado, eles usaram o trabalho de Reinhart e Rogoff do mesmo jeito que um bêbado usa um poste - para amparo, e não iluminação. E então perderam subitamente esse amparo, e com ele a capacidade de fingir que sua agenda ideológica é justificada por necessidades econômicas.

    Mas será que isso ainda importa? Seria possível alegar que não - que os resmungões quanto ao deficit perderam o controle do diálogo mas continuamos a fazer coisas terríveis, como o corte dos benefícios aos desempregados em longo prazo. No entanto, ainda que a política continue terrível, estamos enfim começando a falar de questões reais, como a desigualdade, e não de uma falsa crise fiscal. E isso certamente representa um passo na direção certa.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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