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    Paul Krugman

    O medo dos salários

    14/03/2014 12h22

    Quatro anos atrás, alguns de nós assistimos com uma mistura de incredulidade e horror enquanto uma discussão de política econômica saía completamente dos trilhos. No curso de uns poucos meses, pessoas influentes de todo o mundo ocidental convenceram a si mesmas e aos outros de que os deficit orçamentário eram uma ameaça potencialmente fatal, muito mais grave do que toda e qualquer preocupação quanto ao desemprego em massa. O resultado foi uma virada para a austeridade fiscal que aprofundou e prolongou a crise econômica, infligindo enorme sofrimento.

    E agora a mesma coisa está acontecendo de novo. Subitamente, todas as pessoas sérias parecem estar dizendo umas às outras que, a despeito do alto desemprego, não existe qualquer "frouxidão" no mercado de trabalho —o que pode ser provado por uma suposta alta nos salários—, e que o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) precisa começar a elevar as taxas de juros bem cedo, a fim de evitar o perigo de inflação.

    É justo afirmar que as pessoas que estão defendendo a ideia de um aperto monetário são mais ponderadas e menos abertamente políticas do que os arcontes da austeridade responsáveis pela última virada incorreta de política econômica. Mas a orientação que eles estão oferecendo pode ser igualmente destrutiva.

    Muito bem; de onde é que essa história está vindo?

    O ponto de partida para essa virada na opinião da elite é a asserção de que os salários, depois de anos de estagnação, começaram a subir rapidamente. E é verdade que um dos indicadores mais populares quanto aos salários está mesmo subindo, com um salto especialmente grande no mês passado.

    Mas esse salto é provavelmente uma ilusão estatística relacionada à neve. Como apontaram economistas do banco Goldman Sachs, os salários médios normalmente sofrem um salto nos meses de clima ruim - não porque o pagamento de alguém realmente suba, mas porque os trabalhadores licenciados sem pagamento por conta da neve e tempestades tendem a ter salários menores do que aqueles que continuam trabalhando apesar do clima.

    Além disso, temos múltiplos indicadores quanto aos salários, e apenas um deles mostra crescimento considerável. Está longe de claro que a aceleração de salários alegada esteja mesmo acontecendo.

    E o que haveria de errado com uma alta de salários, de qualquer jeito? No passado, aumentos de salário de cerca de 4% ao ano - mais que o dobro do ritmo atual - se provaram compatíveis com um ambiente de baixa inflação. E existe um ótimo argumento em favor de elevar a meta de inflação do Fed, o que significaria buscar crescimento mais acelerado dos salários, talvez da ordem de 5% a 6% anuais. Por quê? Porque mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) agora alerta sobre os perigos da inflação baixa: uma taxa de inflação baixa demais coloca a economia em risco de niponização, de se ver apanhada em uma armadilha de estagnação econômica e dívida intratável.

    No geral, portanto, embora seja possível argumentar que o mercado de trabalho já não está mais tão frouxo, é igualmente possível argumentar o oposto, e de qualquer forma o mais prudente seria certamente esperar: esperar até que existam provas sólidas de alta nos salários, e depois esperar mais um pouco até que o crescimento dos salários esteja pelo menos de volta ao nível anterior à crise, ou preferencialmente venha a superá-lo.

    Mas por algum motivo existe um tamborilar cada vez mais acelerado de exigências de que não esperemos, de que nos preparemos para elevar as taxas de juros já ou pelo menos muito em breve. O que causa esses apelos?

    Parte da resposta, eu proporia, é que para algumas pessoas 1979 não acabou. Elas estão eternamente vigilantes quanto ao perigo de uma espiral descontrolada de salários e preços, e de alguma forma não perceberam que nada de semelhante acontece há décadas. Talvez seja uma coisa geracional. Talvez seja porque uma crise ao estilo dos anos 70 se enquadra às suas pré-concepções ideológicas; mas de qualquer forma a ameaça fantasma da inflação ainda continua a exercer influência desproporcional sobre o debate econômico.

    E temos também o sadomonetarismo: a sensação, muito comum nos círculos bancários, de que causar dor é necessariamente bom. Existem algumas pessoas e instituições - por exemplo o Banco de Compensações Internacionais (BIS) da Basileia - que sempre querem ver alta nas taxas de juros. Seu arrazoado muda a cada vez - são os preços das commodities; não é a estabilidade financeira; não, são os salários - mas política recomendada é sempre a mesma.

    Por fim, embora o debate monetário atual não seja tão abertamente político quanto o debate sobre política fiscal precedente, é difícil escapar da suspeita de que interesses de classe o influenciem. Número considerável de comentaristas parece estranhamente perturbado pela ideia de que trabalhadores recebam aumentos, especialmente em um momento no qual os retornos continuam baixos para quem investe em títulos. É quase como se eles se identificassem com a classe dos investidores e se sentissem desconfortáveis diante de qualquer coisa que nos aproxime do pleno emprego e portanto dê maior poder de negociação aos trabalhadores.

    Quaisquer que sejam os motivos subjacentes, apertar a política monetária em curto prazo seria uma ideia muito, muito ruim. Estamos emergindo lenta e dolorosamente da pior crise desde a Grande Depressão. Não seria preciso muita coisa para abortar a recuperação; e, caso isso aconteça, certamente nos veríamos niponizados, apanhados em uma armadilha da qual podemos demorar décadas a escapar.

    O crescimento dos salários está mesmo decolando? Isso não está nem um pouco claro. Mas se estiver, deveríamos ver a alta dos salários como um desdobramento a celebrar e promover, e não como uma ameaça a ser combatida por meio de um aperto monetário.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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