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    Paul Krugman

    Riqueza acima do trabalho

    24/03/2014 12h20

    Parece seguro afirmar que o livro "Capital in the Twenty-First Century [Capital no século 21]", a obra-prima do economista francês Thomas Piketty, será o livro de economia mais importante do ano - quem sabe da década.

    Piketty, possivelmente o maior especialista mundial em desigualdade de renda e riqueza, faz mais que documentar a crescente concentração de riqueza nas mãos de uma pequena elite econômica.

    Ele também apresenta poderosos argumentos para explicar que estamos voltando ao "capitalismo patrimonial", no qual os picos da economia são dominados não apenas pela riqueza, mas também pela riqueza hereditária, na qual o nascimento importa mais que o esforço e o talento.

    É certo que Piketty reconhece que ainda não chegamos a isso.

    Até o momento, a ascensão do 1% nos Estados Unidos vem sendo propelida principalmente por salários e bonificações pagos a executivos, e não pela receita de investimento, muito menos pela riqueza hereditária.

    Mas 60% dos norte-americanos mais ricos já são herdeiros, em lugar de empreendedores que tenham conquistado sucesso por esforço próprio, e os filhos da elite econômica atual já começam de uma posição de imenso privilégio.

    Como aponta Piketty, "o risco de derivarmos em direção a uma oligarquia é real, e oferece pouca razão para otimismo".Verdade.

    E se você deseja se sentir ainda menos otimista, considere o que muitos políticos norte-americanos vêm fazendo.

    A oligarquia nascente dos Estados Unidos pode não estar completamente formada ainda - mas um de nossos dois grandes partidos políticos parece já ter o compromisso de defender os interesses oligárquicos.

    A despeito dos esforços frenéticos de alguns republicanos para fingir o contrário, a maioria das pessoas percebe que o Partido Republicano atual favorece os interesses dos ricos, de preferência aos das famílias comuns.

    Suspeito, porém, que menos gente compreenda até que ponto o partido favorece o retorno sobre a riqueza em preferência aos salários. E o domínio da renda auferida pelo capital, que pode ser herdada, ante os salários - o domínio da riqueza sobre o trabalho - é exatamente o cerne do capitalismo patrimonial.

    Para entender sobre o que estou falando, podemos começar por políticas e propostas políticas concretas.

    JOGADA POLÍTICA

    As pessoas no geral compreendem que George W. Bush fez tudo que podia para reduzir os impostos que incidem sobre os muitos ricos, e que os cortes de impostos para a classe média que ele incluiu no pacote eram essencialmente uma jogada política.

    Mas menos gente compreende que os maiores benefícios de seus cortes couberam não às pessoas que recebem altos salários mas sim aos investidores e aos herdeiros de grandes fortunas.

    É verdade que a alíquota mais alta do imposto de renda caiu de 39,6% para 35%, mas a alíquota mais alta sobre os dividendos caiu de 39,6% (já que eles eram tributados como renda normal) para 15%, e o imposto sobre heranças foi completamente eliminado.

    Alguns desses cortes foram revertidos pelo presidente Barack Obama, mas o ponto é que o grande esforço de corte de impostos da era Bush tinha por objetivo principal reduzir os impostos sobre renda não relacionada ao trabalho.

    E quando os republicanos retomaram o controle de uma das casas do Congresso, imediatamente propuseram um plano - o "mapa de percurso" do deputado Paul Ryan - que propunha eliminar os impostos sobre juros, dividendos, ganhos de capital e heranças.

    Sob esse plano, uma pessoa que vivesse apenas de patrimônio herdado não pagaria quaisquer impostos federais.

    Essa virada de política em favor dos interesses dos ricos foi espelhada por uma virada retórica; os republicanos muitas vezes parecem tão determinados a exaltar os "criadores de empregos" que se esquecem de mencionar os trabalhadores norte-americanos.

    Em 2012, o deputado Eric Cantor, líder da maioria republicana na Câmara, infamemente celebrou o Dia do Trabalho com um post no Twitter no qual elogiava os donos de empresas.

    Mais recentemente, Cantor lembrou aos colegas em um evento do Partido Republicano que a maioria dos norte-americanos trabalha para outras pessoas, o que representa pelo menos uma das razões para que os esforços do partido para atacar Obama por supostamente denegrir os empresários tenha fracassado.
    (Outro dos motivos para o fracasso é que Obama não denegriu os empresários.)

    Na verdade, não só a maioria dos norte-americanos não é dona de empresas como a renda gerada pela propriedade de negócios, e a renda gerada pelo capital em termos mais amplos, se concentram em cada vez menos mãos.

    Em 1979, o 1% mais rico dos domicílios norte-americanos respondia por 17% da renda empresarial; em 2007, o mesmo grupo respondia por 43% da renda das empresas e por 75% dos ganhos de capital.

    E, no entanto, é essa minúscula elite que recebe todo o amor dos republicanos, e a maior parte da atenção em suas propostas políticas.

    Por que isso está acontecendo? Bem, tenha em mente que os dois irmãos Koch estão entre as dez pessoas mais ricas dos Estados Unidos, e o mesmo se aplica a quatro dos herdeiros do Wal-Mart.

    Grande riqueza compra grande influência política - e não só por meio de contribuições de campanha. Muitos conservadores vivem em uma bolha intelectual de instituições de pesquisa e de mídia cativas, todas elas financiadas em última análise por um punhado de grandes doadores.

    Não surpreende que quem esteja dentro da bolha presuma, instintivamente que aquilo que é bom para os oligarcas é bom para o país.

    Como já sugeri, os resultados ocasionalmente parecem cômicos. O ponto importante a recordar, porém, é que as pessoas que estão dentro da bolha têm muito poder, e que elas o empregam em favor de seus patronos. E continuamos a derivar em direção à oligarquia.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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