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    Paul Krugman

    A tradição dos Estados Unidos na tributação

    28/03/2014 14h26

    Agora que a desigualdade está se tornando uma questão cada vez mais importante no discurso político norte-americano, a direita está começando a reagir furiosamente. Alguns conservadores argumentam que o foco na desigualdade é insensato, e que tributar as altas rendas paralisará o crescimento econômico. Alguns argumentam que os impostos são injustos, e que as pessoas deveriam ter direito a ficar com aquilo que ganham. E outros ainda argumentam que tributação é um conceito antiamericano, que o país sempre celebrou aqueles que conquistam a riqueza, e que sugerir que algumas pessoas controlam porção demasiada do patrimônio nacional viola as tradições norte-americanas.

    E eles estão certos. Nenhum norte-americano de verdade diria algo como "a ausência de restrição estatal e, especialmente, nacional sobre a obtenção injusta de dinheiro tendeu a criar uma pequena classe de homens imensamente ricos e economicamente poderosos cujo principal objetivo é preservar e ampliar seu poder", e seguiria essa declaração com um apelo por um "imposto gradativo de herança sobre as grandes fortunas... crescendo rapidamente em valor na proporção do valor do espólio".

    E quem foi esse esquerdista? Theodore Roosevelt [presidente republicano dos Estados Unidos entre 1901 e 1909], em seu famoso discurso de 1910 sobre o novo nacionalismo.

    A verdade é que, no começo do século 20, muitos norte-americanos importantes alertavam sobre os perigos da extrema concentração de riqueza e instavam que a política tributária fosse usada para limitar o crescimento das grandes fortunas. Eis mais um exemplo: em 1919, o grande economista Irving Fisher - cuja teoria sobre "deflação de dívidas" é, aliás, essencial para a compreensão de nossos atuais problemas econômicos - dedicou seu discurso como presidente da Associação Econômica Americana em grande parte a um alerta contra os efeitos de "uma distribuição não democrática da riqueza". E ele falou favoravelmente sobre propostas para limitar a riqueza hereditária por meio de pesada tributação de espólios.

    E a ideia de limitar a concentração de riqueza, especialmente a riqueza hereditária, não era só uma conversa da boca para fora. Em seu histórico estudo "Capital in the Twenty-First Century", o economista Thomas Piketty aponta que os Estados Unidos, que adotaram o imposto sobre a renda em 1913 e o imposto sobre heranças em 1916, foram líderes na ascensão da tributação progressiva, se colocando "muito adiante da Europa" com relação a isso. Piketty chega a afirmar que a "tributação confiscatória de rendas excessivas" - ou seja, impostos cujo objetivo era reduzir a disparidade de renda e riqueza, e não arrecadar fundos - foi "uma invenção norte-americana".

    E essa invenção tinha raízes profundas na visão jeffersoniana de uma sociedade igualitária de pequenos agricultores. Quando Teddy Roosevelt fez seu discurso, muitos dos norte-americanos mais prescientes compreendiam que a desigualdade extrema não só representava uma negação dessa visão mas que os Estados Unidos estavam em risco de se tornarem uma sociedade dominada pela riqueza hereditária - que o Novo Mundo estava em risco de se transformar na Velha Europa. E eles se pronunciaram abertamente em favor de que as políticas públicas buscassem limitar a desigualdade por motivos políticos, e não só econômicos, já que a riqueza excessiva representava um perigo para a democracia.

    Assim, de que forma essas visões vieram não só a ser excluídas da corrente central do pensamento político como passaram a ser consideradas ilegítimas?

    Considere como a desigualdade e os impostos sobre as rendas mais altas foram tratados na eleição de 2012. A linha do Partido Republicano era a de que o presidente Barack Obama era hostil aos ricos. "Se a prioridade de alguém é punir as pessoas de sucesso, então ele deveria votar nos democratas", declarou Mitt Romney. O Partido Democrata negou a alegação com veemência (e estava dizendo a verdade). Mas na realidade Romney estava acusando Obama de pensar como Teddy Roosevelt. Desde quando isso se tornou um pecado político imperdoável?

    Ouvimos ocasionalmente o argumento de que a concentração da riqueza não é mais uma questão importante, porque os grandes vencedores na economia moderna são todos homens que fizeram fortuna por conta própria e chegaram ao topo da pirâmide como resultado do esforço pessoal e não de patrimônio herdado. Mas essa ideia está desatualizada em pelo menos uma geração. Novas pesquisas dos economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman constatam que a proporção do patrimônio nacional detida pelo 0,1% mais rico da população dobrou de 1980 para cá, e agora é tão alta quanto no momento em que Teddy Roosevelt e Irving Fisher lançaram seu alerta.

    Não sabemos que proporção dessa riqueza é hereditária. Mas é interessante estudar a lista da revista "Forbes" sobre os norte-americanos mais ricos. Em minha estimativa rápida, cerca de um terço dos 50 indivíduos mais ricos herdaram grandes fortunas. Outro terço é formado por pessoas com mais de 65 anos, que provavelmente legarão grandes fortunas aos seus herdeiros. Não somos uma sociedade com uma aristocracia hereditária da riqueza mas, se nada mudar, nos tornaremos uma sociedade desse tipo, dentro de uma ou duas décadas.

    Para resumir, a demonização de qualquer pessoa que fale sobre os perigos da concentração da riqueza se baseia em uma interpretação incorreta tanto do passado quanto do presente. Falar nesse assunto não é antiamericano; na verdade, é uma tradição norte-americana. E fazê-lo não se tornou de forma alguma irrelevante no mundo moderno. Assim, quem será o Teddy Roosevelt desta geração?

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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