• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 16:57:24 -03
    Paul Krugman

    Os aproveitadores das pradarias

    28/04/2014 10h26

    De certa forma, é lastimável que Clive Bundy - o pecuarista que se tornou um herói da direita norte-americana ao se recusar a pagar taxas por permitir que seu gado pastasse em terras federais, e usar homens armados para sustentar seu desafio às autoridades - tenha provado ser um racista tosco. Por quê? Porque suas diatribes ofereceram uma saída fácil aos conservadores, sem que eles tenham tido de encarar o perigoso desvio de rota que seu movimento realizou.

    Pois o cerne do impasse era uma perversão do conceito de liberdade, o qual, para muita gente da direita, veio a significar o direito de os ricos fazerem o que querem, sem considerar as consequências que isso acarreta para os outros.

    Comecemos pela questão mais estreita, a do uso da terra. Por motivos históricos, o governo federal é dono de muita terra no oeste dos Estados Unidos; parte dessa terra fica aberta a pecuaristas, mineradores e assim por diante. Como qualquer proprietário de terras, o Serviço de Administração de Terras cobra taxas pelo uso de sua propriedade. A única diferença com relação à propriedade privada é que todos os relatos concordam em que o governo não cobra o suficiente - ou seja, não recolhe tanto dinheiro quanto poderia, e em muitos casos nem mesmo cobra o bastante para cobrir os custos impostos por essas atividades privadas. Na pratica, o governo está usando sua propriedade da terra para subsidiar pecuaristas e companhias de mineração à custa dos contribuintes.

    É verdade que alguns dos que lucram com esse subsídio pelos contribuintes conseguem, ainda assim, convencer a si mesmos, e a outros, de que são sujeitos individualistas, autônomos. Mas na verdade eles simplesmente mamam na previdência em meio às pradarias.

    E isso, por sua vez, significa que tratar Bundy como herói libertário de alguma ordem é - melhor não economizar palavras - uma loucura. Suponha que ele estivesse usando terras pertencentes a um de seus vizinhos como pastagem para seu gado, e que se recusasse a pagar pelo privilégio. Isso teria sido claramente roubo - e brandir armas se alguém tentasse impedir o roubo teria transformado a situação em assalto. O fato de que a terra pertença ao público não deveria fazer qualquer diferença.

    Assim, o que é que pessoas como o apresentador Sean Hannity, da Fox News, que saíram abertamente em defesa de Bundy, estavam pensando? Em parte, sem dúvida, sua atitude se deve à tendência geral de demonizar o governo - se uma pessoa parece estar desafiando Washington, certamente devemos tratá-la como heroica, e pouco importam os detalhes. Em parte, é lícito suspeitar, a questão racial também influencia a atitude - não o racismo gritante de Bundy, mas a ideia dominante de que o governo tira dinheiro dos norte-americanos que trabalham com afinco para dá-lo Àquelas Pessoas. Brancos que usam chapéus de caubói enquanto se beneficiam de subsídios do governo simplesmente não se enquadram ao estereótipo.

    Acima de tudo, porém - ou ao menos assim me parece - o fiasco de Bundy é um subproduto do emburrecimento que parece ter posição cada vez mais central na forma pela qual a direita dos Estados Unidos opera.

    O conservadorismo norte-americano costumava ter espaço para visões bastante sofisticadas sobre o papel do governo. O santo padroeiro do movimento no passado era Milton Friedman, que advogava que o governo imprimisse dinheiro agressivamente, se necessário, para evitar depressões. Também havia na direita ambientalistas que levavam a poluição a sério, mas advogavam soluções de mercado como limites para a poluição com notas negociáveis, em lugar de por meio de regras rígidas.

    Mas os líderes conservadores atuais se criaram com romances de Ayn Rand e discursos de Ronald Reagan (desconsiderando a maneira pela qual ele agiu de fato no governo, que era muito mais flexível que sua retórica). Eles insistem em que os direitos de propriedade privada são absolutos, e que o governo é sempre o problema e nunca a solução.

    O problema é que essas crenças são fundamentalmente indefensáveis no mundo moderno, que está repleto do que os economistas definem como "externalidades" - custos que as ações privadas impõem aos outros, mas que as pessoas não têm incentivo financeiro para evitar. Você poderia, por exemplo, afirmar que aquilo que um agricultor faz em suas terras é assunto dele; mas e se ele usar pesticidas que contaminem o lençol freático, ou antibióticos que acelerem a evolução de micróbios resistentes a medicamentos? Você talvez queira declarar que a intervenção do governo nunca ajuda; mas quem mais pode lidar com esse tipo de problema?

    Bem, uma resposta a isso é a negação - insistir em que esses problemas não são reais, que foram inventados por elitistas que desejam nos privar de nossa liberdade. E em companhia desse anti-intelectualismo vem um emburrecimento generalizado, uma exaltação das pessoas supostamente comuns que não aprovam esse tipo de coisa. Basta imaginar a era atual como o momento "Duck Dinasty" da direita.

    É fácil ver como Bundy, que parecia um sujeito saído diretamente de um anúncio do cigarro Marlboro, se enquadrava perfeitamente a essa visão de mundo. Infelizmente, ele falava com um pouco mais de franqueza do que a direita gostaria.

    Gosto de imaginar que esse caso todo de Bundy levará ao menos algumas das pessoas que o apoiavam a refletir um pouco e se perguntar como terminaram se alinhando, ainda que de modo passageiro, a um sujeito como ele. Mas duvido que isso venha a acontecer.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024