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    Paul Krugman

    A linha dura viu o lobo

    29/08/2014 08h00

    De acordo com uma recente reportagem do "New York Times". existe dissensão no Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos). "Uma minoria cada vez mais audível de dirigentes do Federal Reserve quer que o banco central abandone mais rápido" sua política monetária frouxa, que eles alertam poderia causar inflação. E esse debate, nos dizem, deve dominar o grande simpósio econômico que está em curso em Jackson Hole, Wyoming.

    Pode bem ser que seja esse o caso. Mas há algo que você deveria saber: essa "minoria audível" vem alertando sobre uma disparada da inflação mais ou menos sem parar há seis anos. E a persistência dessa obsessão me parece uma história mais importante e mais interessante do que o fato de que os suspeitos usuais estejam dizendo o que usualmente dizem.

    Antes que eu tente explicar a obsessão quanto à inflação, vamos falar sobre o quanto essa obsessão é notável.

    A reportagem do "New York Times" menciona, especificamente, Charles Plosser, do Fed de Fildélfia, que de fato está alertando sobre os riscos de inflação. Mas você deveria saber que ele alertou sobre o risco de alta da inflação em 2008. Voltou a fazê-lo em 2009. Fez a mesma coisa em 2010, 2011, 2012 e 2013. Estava errado todas as vezes mas ele não permitiu que isso o desencorajasse, e está repetindo de novo o mesmo alerta.

    E seu histórico nada tem de incomum. Com pouquíssimas exceções, as autoridades e economistas que lançaram alertas soturnos sobre a inflação anos atrás continuam a lançar alertas mais ou menos idênticos hoje. Narayana Kocherlakota, presidente do Fed de Minneapolis, é o único exemplo importante em contrário que consigo identificar.

    A verdade é que qualquer pessoa que trabalhe há muito tempo no ramo da Economia, e eu certamente sou uma dessas pessoas, ocasionalmente terá feito uma previsão errada. Se não for esse o caso, o profissional em questão certamente está errando pelo lado da cautela. Mas a linha dura da inflação não mostra sinais de ter aprendido com seus erros. Onde estão os esforços de indagação, a preocupação com tentar entender de que forma eles puderam errar ao ponto que erraram?

    A realidade é que, quando você vê pessoas apegadas a uma visão de mundo apesar de todas as provas em contrário, e se recusando a reconsiderar suas crenças a despeito de fracassos repetidos em suas previsões, é preciso suspeitar que haja motivos ulteriores envolvidos. Assim, a questão interessante passa a ser por que gritar "inflação!" é tão atraente para essas pessoas que elas continuam a fazê-lo mesmo que os fatos tenham seguidamente demonstrado que estão erradas?

    Bem, quando mitos econômicos persistem, a explicação geralmente depende da política - e especialmente dos interesses de classe. Não existe uma gota de prova de que reduzir violentamente os impostos dos ricos beneficie a economia, mas não há mistério sobre o motivo para que republicanos importantes como o deputado Paul Ryan continuem alegando que reduzir os impostos dos ricos é o segredo para o crescimento. As alegações de que estamos diante de uma crise fiscal iminente, e de que os Estados Unidos qualquer dia desses se tornarão uma nova Grécia, servem a propósito semelhante, e útil àqueles que desejam desmantelar os programas sociais do governo.

    À primeira vista, as alegações de que uma política monetária frouxa causará desastre mesmo em uma economia deprimida parecem diferentes, porque os interesses de classe são muito menos claros. Sim, baixas taxas de juros significam retornos de longo prazo baixos para os detentores de títulos financeiros (em geral pessoas ricas), mas também significam ganhos de capital em curto prazo para esse mesmo grupo.

    Mas embora a política monetária frouxa possa em princípio ter efeito contraditório sobre as fortunas (literalmente) dos riscos, na prática as demandas por política monetária dura a despeito do alto desemprego sempre vêm da direita. Oito décadas atrás, Friedrich Hayek alertou contra qualquer tentativa de mitigar a Grande Depressão pela "criação de demanda artificial"; três anos atrás, Ryan praticamente acusou Ben Bernanke, então o chairman do Fed, de tentar "degradar" o dólar. A obsessão com a inflação está tão estreitamente associada à política conservadora quanto a demanda por impostos mais baixos sobre os ganhos de capital.

    O motivo para isso é menos claro. Mas a fé na incapacidade do governo para fazer qualquer coisa de positivo é uma das peças centrais do credo conservador. Abrir uma exceção para a política monetária - "o governo é sempre o problema e nunca a solução, a não ser nos casos em que o Fed corta as taxas de juros para combater o desemprego" - talvez seja uma distinção sutil demais a traçar em uma era na qual políticos republicanos extraem suas ideias econômicas de romances de Ayn Rand.

    O que me conduz de volta ao Fed, e à questão de quando abandonar a política monetária frouxa.

    Até mesmo pessoas da linha monetária branda, como Janet Yellen, chairwoman do Fed, reconhecem que chegará o momento em que será preciso tirar o pé do acelerador. E talvez essa hora não esteja muito distante - o desemprego oficial caiu acentuadamente, ainda que os salários continuem travados e a inflação continue contida.

    Mas as últimas pessoas que você desejaria consultar sobre a política monetária apropriada são aquelas que vêm alertando sobre a inflação ano após ano. Não só elas estiveram consistentemente erradas o tempo todo como adotaram uma posição que, quer saibam, quer não é essencialmente política, e não baseada em análise. Devemos ouvir polidamente o que elas têm a dizer - bons modos são sempre uma virtude - mas ignorar suas recomendações.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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