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    Paul Krugman

    A bancada da deflação

    05/09/2014 11h59

    O que é que faz com que uma facção poderosa de nosso organismo político exija uma política monetária apertada mesmo em uma economia deprimida e com baixa inflação?

    Na quinta-feira (4), o Banco Central Europeu (BCE) anunciou uma série de novas medidas que tomaria em um esforço para estimular a economia da Europa. Havia algo de desesperado no anúncio, e isso de alguma maneira serve como conforto. A Europa, que está se saindo pior agora do que nos anos 30, está claramente sob o poder de um vórtice deflacionário, e é bom saber que o banco central compreende o fato. Mas essa epifania pode ter vindo tarde demais. Está longe de claro que as medidas agora propostas terão força suficiente para reverter a espiral de queda.

    E os Estados Unidos, não fosse por Ben Bernanke, estariam no mesmo barco. As coisas por aqui estão longe de satisfatórias, mas parecemos (ao menos por enquanto) ter evitado a armadilha que a Europa está enfrentando. Por quê? Uma resposta é o que o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) começou a fazer a coisa certa anos atrás, adquirindo trilhões de dólares em títulos a fim de evitar a situação que sua instituição irmã na Europa agora enfrenta.

    Pode-se argumentar, e eu o faria, que o Fed deveria ter feito ainda mais. Mas os dirigentes do Fed tiveram de enfrentar ataques furiosos ao longo de todo o caminho. Papudos, políticos e plutocratas acusaram o banco central repetidamente de "desvalorizar" o dólar, e alertaram que uma disparada da inflação era iminente.

    A alta prevista na inflação jamais se materializou, mas a despeito de estarem errados ano após ano, poucos desses críticos admitiram seus erros, ou mudaram seu discurso. E a questão que tenho tentando responder é: por quê? O que é que faz uma facção poderosa em nosso organismo político - podemos defini-la como "a bancada da deflação" - exigir uma política monetária dura mesmo em uma economia deprimida e de baixa inflação?

    Uma coisa é clara: como tantas outras coisas, hoje, a política monetária se tornou questão partidária. Não é só o fato de que toda a conversa sobre a desvalorização venha quase que exclusivamente da banda direita do espectro político; a paranoia quanto à inflação, em medida notável, se tornou artigo de correção política para os conservadores, de modo que até mesmo economistas que deveriam saber melhor aderiram ao coro.

    Com isso, podemos adotar foco ainda mais preciso para a pergunta: por que as pessoas da direita odeiam a expansão monetária, mesmo quando ela é desesperadamente necessária?

    Uma resposta é o poder da "verdadice" - o termo cunhado por Stephen Colbert, e justamente famoso, para coisas que não são verdade mas parecem verdade para algumas pessoas. "O Fed está imprimindo dinheiro, imprimir dinheiro gera inflação, e a inflação é sempre ruim": uma declaração triplamente falsa, mas que parece verdadeira para muita gente.

    E, sim, uma tendência a preferir "verdadices" a verdades mais complexas está e no geral sempre esteve associada ao conservadorismo político, e essa tendência é especialmente forte em uma era na qual políticos importantes extraem sua teoria monetária dos romances de Ayn Rand.

    Outra resposta são os interesses de classe. A inflação ajuda os devedores e prejudica os credores, a deflação tem o efeito oposto. E os ricos apresentam probabilidade muito maior do que os trabalhadores e os pobres de ser credores, ter dinheiro no banco e títulos em suas carteiras de investimento, em lugar de hipotecas e saldos devedores em seus cartões de crédito.

    Na chamada Era Dourada [do capitalismo do final do século 19], a elite se mobilizou em massa para derrotar William Jennings Bryan, que ameaçava tirar os Estados Unidos do padrão ouro; os gastos de campanha, como proporção do PIB, foram muito maiores na eleição presidencial de 1896 do que em qualquer disputa presidencial anterior ou posterior. Será que os ricos estão igualmente mobilizados contra as políticas monetárias relaxadas, hoje?

    Até onde sei, não temos provas rigorosas quanto a isso. Há certamente muitos investidores ricos na turma do "dólar deteriorado", mas não sabemos ao certo o quanto são representativos - e se poderia argumentar que os grandes investidores deveriam gostar das políticas expansivas do Fed, que vêm sendo muito boas para os mercados de ações.

    Mas os ricos podem não confiar nessa conexão, em parte porque os anos 70, uma década inflacionária, foram ruins para as ações. E sabemos que os muitos ricos apresentam probabilidade muito maior que a do público em geral de acreditar que deficit orçamentários sejam o nosso maior problema, ainda que a austeridade fiscal provavelmente prejudique os lucros. Assim, percepções quanto a interesses de classe também aparentam ser uma motivação crucial para a bancada da deflação.

    Um aparte: os ricos da Europa não são tão ricos e nem tão influentes quanto suas contrapartes nos Estados Unidos, mas os interesses dos credores ainda assim são muito mais poderosos lá do que aqui, porque os países credores, especialmente a Alemanha, terminaram ditando políticas a toda a Europa.

    E a coisa importante a compreender é que o domínio dos interesses dos credores dos dois lados do Atlântico, sustentado por doutrinas econômicas falsas mas visceralmente atraentes, vem tendo consequências trágicas. Nossas economias vêm sendo arrastadas a uma queda pelos problemas dos devedores, que se viram forçados a cortar severamente seus gastos. Para evitar uma recessão profunda e prolongada, precisamos de políticas que compensem esse arrasto. O que temos, em lugar delas, é uma obsessão quanto a deficit orçamentários e paranoia quanto à inflação - e uma crise que não dá sinais de acabar.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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